#AColaboradora: Cais da colaboração, por Leo Foletto

Às margens de um dos maiores portos brasileiros, alocada na complexa zona do Mercado Municipal, nasce a Colaboradora, novo (e experimental) projeto do Lab Santista

por Leo Foletto
imagens por Nicole Bassile

No meio de um amplo salão de chão quadriculado preto e branco 16 pessoas estão sentadas em silêncio, de olhos fechados e em círculo. No centro, uma panela de cerâmica preta está cheia até transbordar de amuletos, patuás e folhas de papéis. Caminhando no meio da roda, Gabriel fala em voz suave:

“Eu tô vindo do futuro, 10 meses depois. A Colaboradora tornou-se um espaço de confiança, um lugar acolhedor, um ateliê, espaço flexível nas artes e nos horários. Houve um diálogo com o território muito massa, houve desconstrução para além do ego, todos artistas se abriram, rolou muito tesão para fazer parte do projeto, organizar os processos, trabalhar junto. Há muita disponibilidade, muita troca; tem gente que estudou música pra caramba aqui. Rolou festa, celebração, leveza, arte como forma política, encontros de caminhos para subsistir com sua arte. O espaço foi bom para encontrar caminhos, a história foi muito bem contada, teve uma marca latina de colaboração, construindo um jeito nosso de colaborar. Muitas redes foram formadas, muita gente bateu no peito e se formou mais como artista. Pensar desde o sul, descolonizar o pensamento desde o sul. Teve orquestra; a gente não perdeu a beleza apesar da cruel realidade, aprendeu a ser artista e não só a passar perrengue com sua arte. Foi um espaço de liberdade, de trocar e multiplicar saberes, rolou diálogo, dar voz as marginalidades, comprometimento com o cuidado do espaço, respeito às diversidades, estética agradável, um lugar confortável para vocês, caiçaras, fazer a sua arte. Atingir pessoas e poder trazer elas pra cá também, quais estratégias mantém a vida vivível? Não terceirizamos nossos sonhos, fomos protagonistas; houve uma troca bem massa com o laboratório. Conhecemos as memórias das pessoas do bairro, enxergamos confluência com as comunidades locais. Hoje vocês são mais fortes. Vou pegar minha nave e voltar ao planeta”.

Gabriel para de falar e todos abrem os olhos. É início da tarde de uma quarta-feira de maio em Santos, terceiro dia de imersão da Colaboradora, projeto do Lab Santista que, por hora, podemos dizer que busca criar um ambiente onde artistas, produtores e a comunidade aprendem juntos a solucionar os complexos problemas contemporâneos por meio da arte e da cultura. 14 pessoas foram selecionadas, por meio de chamada pública e escolha de alguns jurados, para passar 10 meses atuando na Colaboradora e no Lab Santista, localizado na rua Sete de Setembro, 52, região conhecida como Bacia do Mercado (Municipal). A imersão faz parte das boas-vindas aos integrantes do projeto oferecido pelo Instituto Procomum, organização responsável pelo Lab. Gabriel, ao lado de Débora e Raíssa, faz parte do coletivo Etinerâncias, facilitadores do processo; o que ele falou de forma mansa, enquanto caminhava pela roda, com seu sotaque carregado do interior de São Paulo, foram os desejos e sonhos que os próprios participantes da imersão apontaram, dois dias antes, para a Colaboradora. Mirar os desejos para o projeto e ouví-los realizados tem o poderoso efeito de fazer com que não pareça tão difícil alcançá-los. É como falar algo para si mesmo em frente do espelho; lembra a sua mente, e o seu corpo, de que realizar é possível, mas não vai ser fácil.

A Colaboradora é um projeto difícil de explicar em uma ou duas frases, por isso melhor contar um pouco de sua origem. Ela parte, em primeiro lugar, do Lab Santista, um laboratório de cultura livre e inovação cidadã montado em Santos a partir do Instituto Procomum. “Um lab é para a cidade o que poesia é para linguagem“, disse certa vez Raul Olivan, ativador do Zaragoza Activa e de La Colaboradora, inspiração assumida do projeto santista. Não há uma essência para a ação de um laboratório de inovação cidadã, mas algumas diretrizes foram sendo construídas ao longo de quase uma década de lugares desse tipo espalhados por países da ibero-américa como Espanha, México, Uruguai e Argentina. A criação de metodologias, tecnologias, projetos e ações para transformar uma dada realidade em busca de maior inclusão social pode ser entendido como uma primeira; a redução da desigualdade local, outro; o uso e o fomento de tecnologias livres, uma terceira. A experimentação, seja social, cultural, econômica ou política, é uma quarta diretriz também aceita, vinculando em definitivo ao significado que a palavra laboratório carrega, no imaginário ou na semântica.

Principal projeto do Instituto Procomum, o Lab Santista é um laboratório de inovação cidadã em formação. Há os grupos de trabalho de Permacultura, Cultura Hacker, Memória e Negritude que realizam encontros e ações no espaço. Há o Circuito Labs, já em sua segunda edição, um festival que seleciona projetos locais que visam solucionar problemas da cidade a partir de inovação cidadã, seja ela associada à tecnologia ou não; ainda será lançado em breve uma residência artística. O Lab ocupa um espaço de 1200 m² que antes sediava a Associação Prato de Sopa Monsenhor Moreira, uma entidade filantrópica ligada à religião católica que recebia dezenas de moradores de rua por dia e oferecia comida, banho e um pouco de cuidado para estes voltarem para a rua no mesmo dia. A arquitetura do espaço foi moldada por décadas ao serviço do Prato de Sopa, o que deixou resquícios; ainda há, agora no Lab, uma capela, junto ao segundo andar do prédio, e uma cozinha grande industrial, no primeiro andar, com duas portinholas que dão para o amplo salão de chão quadriculado, sede da maior parte das atividades da imersão (e de outros projetos do LabsxSantista). Os banheiros que serviam para os moradores de rua se limpar, antes ou depois de receberem seu prato de comida e um pouco de atenção, foram demolidos. Uma casa no pátio dos fundos, moradia durante anos de pessoas que atuavam como zeladoras do espaço, está cedendo lugar a bancos de caixas de frutas e outros mobiliários que estão sendo construídos nas próprias ações do Lab.

A Colaboradora nasce, então, como um projeto dentro do Lab Santista. Um projeto inicialmente inspirado em La Colaboradora, de Zaragoza, na Espanha, como já foi dito; Raul Olivan e Rodrigo Savazoni, um dos três diretores do Instituto Procomum, são amigos e influências mútuas em suas ações cotidianas. Há algumas diferenças importantes entre um e outro: lá, o espaço é ligado à prefeitura da cidade; aqui, um espaço privado, cedido ao Instituto Procomum pela Associação Prato de Sopa Monsenhor Moreira por um comodato; lá, recebe pessoas interessadas em desenvolver projetos de inovação mais voltados à tecnologia e à economia criativa; aqui, um espaço a unir artistas e produtores culturais para trocar afetos, saberes e “criar novos imaginários e formas de viver”, como diz Marília Guarita, diretora do Instituto Procomum. Magui, como Marília é chamada, é a  coordenadora da Colaboradora e quem cuidou de contatar um a um os participantes, além de ser a pessoa a resolver a maior parte das questões, burocráticas, técnicas e afetivas do projeto.

Há, além destas, duas outras diferenças significativas da proposta santista para a espanhola. A primeira é a inclusão dos cuidados da vida; a Colaboradora quer beber dos saberes tradicionais brasileiros na formação e na convivência de seus participantes. Na prática, isso inclui cuidar do corpo, do espírito e das emoções no processo e trocar aprendizados com as culturas quilombolas e indígenas da Baixada Santista – são 37 aldeias, a maioria da etnia guarani, na região. O coletivo Etinerâncias guiar a imersão inicial faz parte desse processo; seus três integrantes já percorreram de kombi, durante três anos, boa parte do interior do Brasil e de alguns países da América Latina atuando junto à comunidades tradicionais e espaços de resistência, vivenciando saberes e co-criando projetos coletivos. São experientes em guiar pessoas a partir de jogos, brincadeiras e exercícios que mexem com o corpo, as emoções e o espaço e que envolvem a cultura popular brasileira.

A segunda outra diferença significativa da Colaboradora brasileira merece um tópico à parte.

TERRITÓRIO

Na tarde do segundo dia de imersão, o trio Etinerâncias fez um convite à uma deriva pela região ao redor do LabxSantista. Em duplas, xs integrantes da Colaboradora – artistas gráficos e circenses, grafiteiros, músicos, atrizes, diretoras, produtoras culturais, escritoras de Santos e da Baixada Santista  – foram caminhar pelo entorno e observar como é o espaço em que durante 10 meses vão atuar; se cruzassem entre si, deveriam mudar de caminho, já que o objetivo era dispersar as duplas ao máximo pelo território.

A Bacia do Mercado, o território explorado na deriva, é uma área que fica em torno do Mercado Municipal, inaugurado em 1902 (mas reconstruído em 1947 no estilo que até hoje mantém) com a junção de dois outros mercados do gênero que funcionavam na cidade e que, hoje, conta com 54 boxes de açougues, empórios, hortifrutigranjeiros, laticínios, peixarias, artesanatos, antiguidades, floricultura, muitos deles desocupados. A região, conhecida como Vila Nova, fica distante 20 minutos a pé do centro de Santos, local onde começou a ocupação da cidade, e outros 30 minutos da praia dos bairros do Boqueirão, Gonzaga e Ponta da Praia – reduto da classe média e alta local. É formada por ruas estreitas, comércios variados e cortiços – hospedagens apertadas, normalmente em prédios ou casarões antigos já deteriorados, habitadas por famílias numerosas e pobres. Região de alto índice de criminalidade, tráfico de drogas, prostituição infantil e atuação de milícias, não é um lugar confortável de se andar à noite para a maior parte dos moradores de Santos.

No dia seguinte, a primeira atividade da manhã foi conversar sobre o que todxs viram, sentiram, ouviram na deriva. “Muita gente precisando de casa, muita casa vazia.” “Não falta vitalidade, o que falta é acesso a direitos”. “O sagrado é a convivência das pessoas, o forró, o churrasquinho da esquina. Há muita gente na rua, pelo menos antes de cair a noite”. Mid, artista gráfico e um dos 14 selecionados para o projeto, comentou: “A bacia do mercado é um dos poucos lugares onde você pode ficar na rua sem que a Guarda Municipal te tire. Aqui ela fica perto e não incomoda – pelo menos não tanto quanto em outros lugares”. Há dois sentimentos opostos na percepção do território: primeiro é o de que ele é uma região abandonada pelo poder público, deteriorada fisicamente, que merece cuidado; e o segundo é de que é uma região onde as pessoas estão na rua, vivendo e se divertido do seu modo, e que portanto não precisa ser “revitalizada”: não falta vida para ser (re) vivida. Falta atenção.

A conversa sobre o território toma espaço na imersão, preocupa e ocupa porque é nele que a Colaboradora vai atuar. E também porque é no conhecimento e na aproximação com entorno um dos principais desafios do projeto e de todo o LabxS, que ocupa o prédio nº52 da rua Sete de Setembro desde agosto de 2017, portanto ainda nem um ano completado. Geórgia Nicolau, diretora do Instituto Procomum, é uma das que fala nessa hora: “Como a gente vai se colocar no território? Temos que perceber que a troca pode se dar também de uma forma não agradável. Temos responsabilidades com esse lugar: não queremos ser colonizadores, trazer a verdade, uma única verdade. O que a arte e a estética pode contribuir nesse aspecto? Como colocamos o que a gente sabe a disposição para a construção do comum aqui”? Ornella Rodrigues, participante da Colaboradora, comenta: “será que estamos preparados para ouvir essas pessoas, sem moralismos, bloqueios? Não podemos tratar as pessoas que aqui moram querendo necessariamente modificá-las. Não acho que isso seja legal, talvez as pessoas estejam passando por certas dificuldades que eu não consiga acessar. Não vou querer impor a minha verdade”. Rodrigo Savazoni lembra Gilberto Gil e, no contexto de entender se as pessoas estão contentes com o que vivem na rua, cita uma frase do músico e ex-ministro da Cultura: “O povo saber o que quer, mas também quer o que não sabe.”

CELEBRAÇÃO

Ao final da tarde do último dia de imersão, seguimos todxs para o espaço em frente ao Mercado Municipal onde ocorre o embarque e o desembarque dos pequenos barcos de madeira chamados catraia. São esses barcos, espécie de canoas maiores e motorizadas que levam até 20 pessoas sentadas, a forma mais rápida de acesso entre Santos e Vicente de Carvalho, distrito de 130 mil habitantes que pertence à cidade de Guarujá. O trajeto de 800 m é feito por pequenos barqueiros que atracam em frente ao Mercado; cobram R$1,50 para a travessia, que percorre em 10 minutos o Estuário de Santos, onde os enormes navios que chegam ao porto atracam, até chegar em Vicente de Carvalho. Para pegar o estuário, as catraias tomam um pequeno canal que passa embaixo de avenidas e armazéns das Docas do porto. Nesse dia, a maré alta fez com que o espaço entre as águas do canal, em baixo, e as ruas e armazéns, em cima, fosse menor que o usual. Os mais altos tiveram que se abaixar para não baterem no concreto enquanto o barco deslizava em direção ao estuário.

A proposta da travessia de catraia foi olhar o território de outra perspectiva. Sair pelo estuário e passar ao lado de alguns dos maiores navios mundiais, em que só o leme é maior que duas catraias, nos faz, de fato, pequenos; também de longe vemos o quanto os armazéns e guindastes das docas do porto formam uma espécie de muralha que distancia as moradias – e as pessoas – da água nesta região. Estar em movimento no mar lembra, mais uma vez, que Santos é uma ilha cercada de águas e de outras ilhas como a pequena Diana, primeira parada de nossa catraia. Acessível somente de barco, é uma das únicas colônias de pescadores ainda existentes na região, habitada por cerca de 50 famílias. A calma de seus moradores, a tranquilidade dos seus cachorros, o silêncio das casas de portas abertas são imagens que convidam à uma pausa na programação intensa e a contemplação do fim de tarde.

Com a noite começando a chegar, a próxima parada da embarcação é Vicente de Carvalho. Distrito de grande diversidade cultural, foi a primeira morada do ex presidente Lula, em 1952, quando veio junto de sua mãe Eurídice e seus irmãos de Caetés, interior de Pernambuco, depois de 13 dias de viagem em “pau-de-arara” atrás de seu pai Aristides, que havia partido anos antes atrás de um emprego de estivador no Porto de Santos. Lula tinha sete anos de idade e morou até os 12 em Vicente de Carvalho (que na época se chamava Itapema) com sua mãe, seus irmãos e seu pai, que já tinha outra família na cidade.

Assim como Lula, milhares de nordestinos passaram e ficaram por Vicente de Carvalho; a região é conhecida localmente por seus diversos restaurantes, lojas e armazéns de produtos do nordeste. Sacos de diferentes tipos de farinha de mandioca, carne seca em enormes pedaços, inhames gigantes, prateleiras com vidros de pimentas, manteigas de garrafa, potes de requeijão e cachaças variadas decoram um desses armazéns, A Rainha do Norte, o local escolhido para a celebração final da imersão da Colaboradora, a dois quarteirões do desembarque da catraia. Com cerveja e cachaça para todxs, forma-se um pequeno U de mesas e cadeiras, com um palco no meio: é ali que os integrantes do projeto, xs três diretorxs do Procomun e os facilitadores promovem um sarau. Cada pessoa apresenta outra, conforme combinado ainda em Santos. As performances variam de acordo com as artes de cada um; há truque de mágica, malabares, dança de frevo improvisada, percussão corporal e poesia, dos participantes e de outros autores, como Paulo Leminski, citado por Geórgia: “Isso de ser exatamente o que se é ainda vai nos levar além”, frase que parece ser um bom desfecho inicial para um processo que ainda tem 10 meses para ser vivido.

 

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