Vida que segue

Uma mulher idosa em uma cadeira de balanço próxima a única janela de um pequeno apartamento. Iluminada pela luz da tela, suspira, põe os óculos e faz uma ligação

“Olá, seja bem-vindo ao serviço nacional de escuta e aconselhamento Vida que Segue, mais uma medida do governo federal no combate aos efeitos do isolamento, como está se sentindo hoje?”

Alô? É do governo? Me ajuda pelo amor de Deus, minha filha não deixa eu sair de casa, a minha filhinha, olha vocês prometeram que ia ficar tudo bem, que ia ter atendimento especial, sempre fiz das tripas coração pra criar ela sozinha, cansei de falar que pra gente que nem nós era tudo mais difícil que tinha que estudar muito pra ser médica, que tinha gente que até endoidava, mas era geniosa demais, juntei tudo que era livro grosso dizendo que ela tinha que ler até o final do ano pra ser doutora, pra ver se desistia logo, mas foi toda vida assim com a cara nos livro, só eu e ela , não tinha namorado, não gostava de viver enfiada na casa de amiga, gostava era de estudar, fazer o quê?

“Olá, desculpe interromper, mas ainda não conseguimos identificar o seu problema. Não tenha vergonha, muitas pessoas ainda enfrentam as consequências do longo período em isolamento, por isso criamos essa plataforma para mostrar que o governo está ao seu lado todo momento. Vamos tentar novamente, fale o seu problema em poucas palavras, por exemplo pesadelos recorrentes ou isolamento compulsivo.

Alô? Alô? ninguém ouve mais nada hoje em dia, eu dizia que quando ela fez 15 anos eu consegui dela fazer um cursinho de cabeleireira, pra ver se conformava, mas não adiantou , quando o povo começou a ficar doente tinha acabado de conseguir a faculdade sozinha e porque era inteligente de mais logo chamaram pra fazer plantão. Como eu já era velha e tenho outras doenças, foi morar num quartinho perto do hospital.

“Parece que você está enfrentando uma situação complicada. Vamos simplificar? Se você acha que o seu problema é:

Solidão, digite 1

Angústia, digite 2

Problemas familiares, digite 3

Problemas financeiros, digite 4

Dificuldades de adaptação a nova rotina, digite 5

Outros ou todas as alternativas anteriores, digite 6.”

Minha filha! O problema é minha filha, ela não é número, não sei de número nenhum moço…serve a certidão de nascimento? Aqui tá uma bagunça, mas as coisas dela eu deixo bem guardadinha.

“Digite 0 para ouvir novamente as opções, ou aguarde na linha para ser encaminhado para um dos nossos ouvintes”

Que ouvintes? Você é surdo? Não tô falando com você criatura? Bem que falam que funcionário público é tudo preguiçoso, eu tava falando que a minha filha ficou nessas de casa hospital mais de mês sem se ver, aí ela me ligou da cama falando que tinha uns dias que tava doente e que depois me ligava, mas isso já tem tempo, foi antes dessa doença maldita acabar.

“Opção inválida.”

Tem alguém aí?

“O programa Vida que Segue agradece a sua ligação, estamos encaminhando sua chamada para um dos nossos ouvintes solidários”

Ninguém quer saber de velha inútil mesmo, só minha filhinha que me ouve até o fim, eu não preciso entendeu? Nunca precisei de governo pra nada, eu que não me cuidasse pra ver, mas vocês tinham a obrigação de saber, ela arrisca a vida naquele hospital que falta de tudo, eu sabia que ela tava doente, mas ela não queria que eu saísse por nada, então fiquei esperando, esperando uma ligação e agora todo mundo acha que tudo voltou ao normal, mas eu passo os dias deitada ouvindo ela repetir “bom dia mãe”, “boa tarde mãe”, “boa noite mãe, hoje não precisa me esperar”, mas eu espero acordada perguntando por que meu Deus que ele deixou o mundo acabar de cabeça pra baixo?

Abre a cortina e olha o céu

“Jaqueline, boa noite, com quem eu falo?”

Filha? Eu sabia, eu sabia que você ia me ligar.

“A senhora quer falar sobre a sua filha?”

Eu queria, queria Jaque, queria correr por aí gritando até acordar esse cemitério, mas você não me deixava sair minha filha…eu rezei tanto pra ouvir sua voz.

“Sinto muito, a senhora não parece bem, gostaria de receber a visita de um dos nossos profissionais de saúde?”

Sim, minha filha, Doutora Jaqueline! A mamãe vai se arrumar que a noite tá linda e a gente já pode se encontrar de novo.

Tira os óculos, solta o cabelo, abre as janelas e salta, finalmente, deixando o confinamento. O celular no parapeito responde ao vento:

“A senhora receberá uma visita em até 48h, por favor, aguarde na linha para avaliar o serviço, sua opinião é muito importante para nosso funcionamento.”

950 950 Editor
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