Compreender o território é viver o território.

LAB Tempestade é um Laboratório de ações climáticas que, em sua primeira edição, está acontecendo em Olinda. Trata-se de uma iniciativa viabilizada em conformidade com as premissas de nossa metodologia que, dentre seus norteamentos, prevê como inovação cidadã um convite para experimentar e transformar a cidade realizado por meio de uma chamada pública de fácil participação: qualquer pessoa pode inscrever uma proposta, sem entraves burocráticos. O objetivo é possibilitar a realização de uma série de ações de inovação cidadã que beneficiem as pessoas e os territórios, viabilizado com auxílio de microbolsas.

 

Entendemos que as soluções para um determinado problema social, partem das pessoas que o vivem e, sendo assim, ao compor a equipe que faria a seleção das iniciativas que engendrariam o LAB Tempestade Olinda, além de membros da equipe do IP e da Casa Criatura, foi fundamental a participação de colaboradores locais. Sandra Silva mora em Iputinga, bairro de Recife, há 50 anos e destes, 3 são dedicados às moradoras de quatro favelas à beira da maré: Cajá, Chiclete, Ponte da Salvação e Bomboniere. Numa conversa, Sandra conta um pouco da sua atuação no território e, consequentemente, no LAB Tempestade. 

 

A única justificativa para conversar com Sandra via Zoom é a distância de mais de 3000km que nos afasta. É filha de uma família composta por 6 irmãs, 1 irmão, pai e a mãe, Vanilda Batista, que é referência para ela na luta pelas  mulheres “Morávamos em uma região com muita prostituição e desde nova ouvia minha mãe tomando partido quando via mulheres sofrendo violência” . A voz imponente, os olhos vívidos e o bom humor rogam presença e por falar em olhos, foram eles que em 2019 repousaram sob outras vivências quando Sandra resolveu dar início ao projeto Mulotus, palavra que vem da junção de Mulher e Lótus. Sandra sentia-se intrigada com a quantidade de mulheres circulando pelas ruas das favelas  e a princípio acreditava que o problema consistia na falta de empregos. No entanto, a vivência junto a essas mulheres a fez reconhecer que o problema era mais embaixo: “A princípio a minha ideia era arranjar emprego para essas mulheres. Eu mobilizei toda uma rede de contatos e neste momento eu percebi que era muito mais do que isso. Eu não tinha como alcançar e em busca de respostas em 2020 comecei a acompanhar um grupo de 10 mulheres, eu ia até o local onde habitavam para entender e ouvir, pois eu não queria chegar com soluções medíocres, sem uma escuta real. Eu queria entender porque, ao passar neste lugar que culmina nessas quatro favelas, havia tantas mulheres na rua. Eram muitas mulheres e muitas crianças. A população de mulheres aqui é muito grande.”

“Eu acho até engraçado quando eu leio o meu projeto inicial, está lá: encorajar, motivar com viés de empreendedorismo e educação ambiental. Eu achei que estava arrasando, mas hoje eu vejo que posso conseguir o melhor emprego para elas, que elas não permanecem. Não tem como alguém com fome e com os seus direitos negados participar de oficina ou palestra nenhuma, é hipocrisia. Elas se sentem enganadas e usurpadas. Eu tenho diminuído as ações, não havia engajamento ou ímpeto de empreendedorismo, a dor te impede de pegar numa batedeira para fazer um bolo.”

 

Segundo dados do IBGE, a população de Olinda é composta por 53,75% de mulheres e nos territórios estudados por Sandra, boa parte das casas são chefiadas por esta parcela. Muitas dessas mulheres foram abandonadas pelos companheiros ou os perderam devido a violência. O tráfico e o sistema carcerário absorvem muitos dos jovens provenientes desses lares. Estes e outros fatores provenientes da pobreza, geram muito sofrimento e desesperança: “Há ações que a gente não consegue executar e são fadadas ao fracasso, pois as mulheres não acreditam que  podem melhorar. Quando eu consegui o primeiro emprego para uma delas, percebi que elas não conseguiam se manter no lugar, há uma enorme instabilidade emocional, grave, crônica e se torna aguda porque o massacre é grande e trazer essas mulheres para posicionamento de pertencimento é muito difícil. Fazer com que as mulheres saiam da curva da miséria e pensem  “Agora eu vou pra cima!”, é praticamente impossível. Direcionei todas para terapia, inclusive eu, comecei a tentar, através da leitura, entender inteligência emocional.” O resultado do diálogo mantido entre Sandra e essas mulheres é de extrema relevância, no ano passado, das 62 mulheres cadastradas e cuidadas pela iniciativa, 35 delas voltaram a estudar. 

 

Rayane Aguiar é uma das articuladoras do LAB Tempestade, Sandra conta que a conheceu em meio a operação feita para abrigar as famílias desalojadas após as chuvas que acometeram a cidade em 2022: “O ano passado todas as pessoas que viviam nessa área ficaram desabrigadas e estamos falando de mais ou menos 670 famílias. Ficamos 15 dias morando em uma escola. Eu voltava pra minha casa apenas para dormir. Foi o maior abrigo da prefeitura de Recife. As salas de aula viraram domicílios abrigando até 11 famílias. Para mim, as chuvas são anúncios de desgraça.  Muitas famílias não se recuperaram até hoje e vivem em situação de rua sem apoio governamental. As famílias que têm meninas, por exemplo, não vão para albergues, pois a grande raiz das pessoas em situação de rua é o uso de drogas e essas famílias temem pela segurança, especialmente, das meninas.”

Compreender o território é viver o território. De acordo com as palavras de Sandra, fazer algo sem entender o que é, é fadado ao fracasso. Quando em 2022 surgiu a necessidade de se organizar o  maior abrigo devido a quantidade de famílias desalojadas, Sandra, ao lado de outros 30 voluntários, enfrentou diversos embates diante dos orgãos públicos para garantir direitos a essas pessoas e afirma: “Existe um enorme abismo entre a prática e a academia e eu me encontro no meio deste abismo para ligar uma coisa a outra, é preciso mostrar que há pessoas que moram em comunidades nas quais não existe banheiro, essas pessoas não usam o vaso sanitário e talvez não saibam passar um rodo e por isso agem fora do que esperam. O poder público, por vezes, exige coisas que não cabem. Convido estas pessoas:“Vamos ali conhecer de onde essas pessoas vêm”  e a partir dali surge um outro olhar. É necessário entender a história das pessoas e Ray, então membro da RECENTRO, uma das secretarias da prefeitura de Recife, foi uma das lindas pessoas que eu conheci nesse caminho.” É importante ressaltar que o deslocamento, organização e acomodação das famílias foi todo organizado por líderes comunitários que só após este primeiro momento puderam contar com o auxílio dos orgãos públicos para a instalação de unidades de saúde, por exemplo.

 

Sandra conta que chorou quando foi convidada por Rayane  para participar do LAB: “ Sabe quando você vê algo como solução palpável?” Ray explicou que o LAB tinha como objetivo reunir técnicos, propostas e soluções e que o olhar real de Sandra sobre a comunidade era fundamental. “Fizemos reuniões e me passaram um espelho do que seria essa propostas e as pessoas traziam possibilidade e aí a gente entrou em grandes embates pois constatei que o que eu supunha era  verdade: Haviam  muitas pessoas com conhecimento, mas sem prática do que é uma comunidade e algumas propostas eram vazias, contudo, após ler 71 propostas, aprendi muito e aprendi muito a respeito do que não fazer “como você sugere uma cartilha a uma comunidade com alto índice de analfabetismo, por exemplo?” Sandra acrescenta: “Pessoalmente, participar do processo foi lindo, porque me reafirmou como uma conhecedora das favelas.” Sandra percebeu que aquele medo antigo de propor soluções vazias já  não existe mais, “ Não há superficialidade no que faço. Eu passei noites analisando, ia pra frente e para trás, conhecia os artigos dos proponentes e no resumo de tudo foram escolhidas 30 pessoas maravilhosas e para quem trabalha no que eu trabalho, isso é esperançar. Eu acredito muito que daquelas propostas serão utilizadas na minha favela.”

 

 

De agora até o final do processo, Sandra pretende acompanhar a evolução dos protótipos pois acredita que pode contribuir mais, menciona que, por exemplo, nenhuma das propostas aborda as questões emocionais tão valiosas para comunidade de acordo com as próprias observações. Nesta semana, os protótipos realizados pelos proponentes de Olinda serão apresentados na Casa Criatura e o Instituto Procomum lança o LAB Tempestade Baixada Santista amparado por tudo que foi vivenciado no laboratório de Olinda. O nosso desejo é que, cada vez mais, nosso espaço seja campo de encontro e florescimento de pessoas e soluções para os nossos territórios.

400 400 Editor
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2 Comentários
  • Heroíto Luiz da Silva

    Parabéns Sandra Maria vc tem feito a diferença no território e onde vc chega.

  • Dias que nunca esquecerei noites sem dormir para cuidar daqueles que mais precisava de nossas ajudas. Conheci pessoas incríveis e hoje elas não estão mais sozinhas sempre estou perto dando lhe uma mão para apoiar obrigada meninas por esse momento tão sofrido.

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