(DES)FAZENDA: O FIM DO MUNDO COMO O CONHECEMOS – Por Rodrigo Savazoni
Amanhã começa o ciclo de conversas sobre Artes e o Comum organizado pela Colaboradora, escola livre do Instituto Procomum (IP). Escrevi esse texto para explicar um pouco o exercício curatorial que fiz para chegar à programação.
A Colaboradora – Artes e Comunidades é uma escola de arte que busca estimular a colaboração entre diferentes artistas e linguagens e promover impacto social no território do entorno de nosso Laboratório Cidadão, o LAB Procomum. Essa escola também é um espaço de reflexão e experimentação sobre arte e o comum, entendido aqui como processo coletivo, comunitário e auto-gestionado de criação.
Em 2020, em meio à segunda temporada do programa, que reúne artistas residentes e uma equipe multidisciplinar de mentores, fomos atravessados pela pandemia de Coronavírus (COVID-19), fato que exigiu a revisão de nosso plano de ação e tem nos convocado flexibilidade e capacidade de adaptação.
Diante dessa crise, a ideia de fim de mundo passa a se projetar em nossas telas mentais.
O colapso da experiência humana não é, obviamente, um assunto novo. A crise climática do século XXI, as catástrofes tecnológicas dos anos 1990 e 1980, a ameaça nuclear, as guerras mundiais; os cavaleiros do Apocalipse sempre estiveram vagando entre nós.
A novidade talvez esteja no surgimento de um conjunto de pensadores-artistas brasileiros que abordam o fim do mundo como algo necessário, em certa medida positivo. Precisaríamos morrer, todos juntos, para continuarmos vivos?
Esse aparente paradoxo surge na obra do escritor Ailton Krenak, em dois livros que compilam discursos feitos por ele nos últimos anos em torno de “ideias para adiar o fim do mundo”. Com abordagem semelhante, de extrema originalidade, a obra de Denise Ferreira Da Silva, artista e pesquisadora brasileira radicada na América do Norte, defende o fim como possibilidade. Esse é um dos eixos centrais de seu “A Dívida Impagável”, em que propõe uma inversão teórica a partir do pensamento e da criatividade das mulheres negras, com a destruição do mundo moderno imaginado pelos filósofos brancos, ética e politicamente racista.
Enxergamos ressonâncias nessa proposição com a obra dos antropólogos Eduardo Viveiros de Castro e Débora Danowski, cujo “Há Mundo por Vir” explora os fins e os medos contemporâneos, inventariando suas origens.
Viveiros de Castro há muito nos fala de um devir-índio, que desloca o lugar da razão, reposicionando quem deve ensinar e quem precisa aprender. Para sobrevivermos, como espécie, temos de nos tornar indígenas.
A ciência de fronteira global vive justamente esse conflito entre uma nova “organicidade” e o “pós-humano”.
As placas tectônicas de Gaia Pachamama estão em movimento. A mãe tenta respirar, sufocada pela espécie humana que não sabe se a acolhe ou se a abandona de uma vez por todas (como se fosse possível).
A questão tecnológica no centro da vida. Seria o fim do mundo a única resposta à obra nefasta do sujeito patriarcal, que, premido entre a animalidade e a deidade, resolveu destruir-se, destruindo tudo ao seu redor?
O que, efetivamente, precisa acabar?
O ciclo (DES)fazenda toma por referência esses pensamentos brasileiros originais sobre o fim do mundo para refletir sobre nosso presente perpétuo, algo impossível de se fazer sem reconhecermos que o “limite é a condição do salto” (MOMBAÇA E MATTIUZZI, no prefácio de “A Dívida Impagável”).
Haverá dia seguinte? Qual o papel das artes e dos artistas neste contexto? Como as artes e os artistas podem ser parte da construção de comunidades e redes que apontem possibilidades para além-do-fim? O que fazer agora, já, em nossas ilhas?
(DES)fazenda dialoga com a (RE)fazenda de Gilberto Gil, uma das obras de sua trilogia pan-africana dos anos 1970.
Onde está nossa fazenda, esse espaço para nos unirmos, solidariamente, e produzirmos novos sentidos, depois da pandemia? Destituir a modernidade. Restituir o afeto. Instituir.
O prefixo DES, entre parênteses, propõe um jogo de afirmação e negação da palavra principal. Precisamos liberar espaço em nossos HDs saturados para preenchê-los com outras perspectivas.
Vamos, juntos, (DES)aprender, (DES)territorializar, (DES)ocupar, (DES)materializar e (DES)encantar, a partir de aproximações entre artistas e pensadores que estão conectados ao nosso tempo.
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