Em algum momento dos anos 80, Santos-SP

 

É o acordar. Despertar do sonho. Do transe. Do respiro. Da morte. Chame como quiser, mas tentei descansar. Por uma…Duas horas. Não sei mais como contar, mas tentei. Descansar?

Não sei quando ele volta, se é que volta, por mim podia nunca mais passar por aquela porta. E o pior é que não tem mais como mentir para as crianças. Apareceu no Silvio Santos. Foi convidado para tocar no Fantástico. A música não sai da rádio. Essa semana é capa do jornal e para tirar minha paz, todos da boate e do cortiço só falam do infeliz.

Ah, antes tivessem arrancado meus ouvidos numa navalhada só do que viver esse pesadelo todos os dias.

Mas ele podia voltar. Podia. Nem que seja para dar uma explicação. Ao menos uma carta. Uma carta. É pedir demais um pouco de consideração depois de tudo o que aconteceu? Não digo por mim, mas pelos filhos dele. Filhos dele. Filhos que perderam a mãe e agora perdem o pai.

Traste. Imundo. Por que foi fazer isso comigo? Fazer isso com a gente? Ele foi, mas ainda sinto suas mãos deslizando sobre as minhas coxas e o calor da sua voz aquecendo meu pescoço seguido de um beijo. Ah, seu beijo…Imundo! 

Como eu o odeio. Como eu me odeio. Comigo? Justo comigo, infeliz?!

Que o sucesso se vire contra você e que as luzes do palco queimem teus olhos, pois além de levar o amor que um dia acreditei, levou também o espaço que é meu por direito. 

Nessa porra de cidade se fala muito de moral, do sucesso de José e o quanto todos devem ficar atentos ao vírus que as travestis e os homossexuais estão transmitindo. Nós? Engraçado isso, não?

Gritam: Cuidado com os homossexuais e as travestis!

E os filhos de José que estão sendo alimentados pela travesti, com dinheiro de shows em boates? Ninguém fala sobre isso. Ninguém fala do tanto de gente que mora nesse cortiço por falta de emprego que pague o justo para se manter em uma casa decente. Um país em que devemos escolher entre comer ou morar bem não devia ter como prioridade exterminar as travestis que também tem sonhos tal qual os engravatados que passeiam na hora do almoço na Praça Mauá. 

Estou cansada. Ferida. Puta da vida. E hoje, se esperavam um show de amores e farras, entrego o show de uma travesti que canta sobre a dor de amar e ser caçada por ter nascido!

 

 

Maria Tereza

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