O cuidado como centro no futuro da América Latina

A experiência com a pandemia da Covid-19 enfatizou não só a gravidade da crise climática mundial, como também os traços marcantes que determinam a desigualdade de gênero e a exploração do trabalho reprodutivo, tornando claro que é a força do trabalho de cuidado, feito por mulheres em seu grande pedaço, o alicerce de todo esse sistema que se impõe nocivo ao bem viver da Terra.

Mais recentemente, em pesquisa feita pela Think Olga e de acordo com dados levantados pelo IBGE, veio à tona que, por semana, as mulheres gastam, em média, 61 horas em atividades de cuidado não remuneradas em nosso país. Se calculadas como trabalho remunerado, essas horas seriam equivalentes a 11% do PIB, um número maior do que o produzido pelo setor agropecuário no país. Chamam a atenção também os números apresentados pela ONU Mulheres: 93% do trabalho doméstico na América Latina e Caribe é realizado por mulheres. No Brasil, 65% delas são negras, de acordo com dados levantados pelo PNAD e o IBGE.

 

Feito bruxas, medusas ou “anti-heroínas”, na linha de frente contra uma sociedade que se vale da necropolítica, pregando a “privatização” da vida e a destruição dos corpos, como nos ensina o filósofo camaronês Achille Mbembe, as mulheres, ao longo da história, ocupam um papel de destaque nas principais ações e lutas pela revolução e democratização social e em defesa dos bens comuns que permeiam a América Latina, pensando a sustentabilidade econômica, política e social de suas comunidades e contribuindo ativamente para o reflorestamento de suas narrativas e da narrativa do mundo.

 

Diante desses atravessamentos, contribuir para o fortalecimento e o surgimento de “novos agoras”, tendo como premissa a descentralização territorial num mundo eurocentrado e americanizado, o apoio à luta de equidade e igualdade racial e de gênero e a preservação da natureza, mantendo um “sul orientador”¹, é vital para a sobrevivência da humanidade e dos ecossistemas..

 

A ativação de laboratórios de inovação cidadã se apresenta como uma alternativa promissora de transformação – quando “a ação coletiva em distintos territórios é um verdadeiro laboratório de soluções interseccionais enunciadoras de outras possibilidades de vida”².  

 

Em 2022, o Instituto Procomum estreou as primeiras missões do projeto LA Cuida –  Laboratórios de Ativação para a Economia do Cuidado na América Latina, elegendo para esse começo a Colômbia e o Uruguai. Dois países que, ademais de suas diferenças culturais, históricas, sociais e econômicas, assemelham-se na construção de políticas públicas e ações afirmativas que reparem os danos causados às mulheres pela ordem sistêmica e, também, à toda população campesina, indígena e afrodescendente que nutre com vida os seus territórios.

 

Como ponto de partida, foi priorizado o mapeamento de iniciativas, organizações e movimentos que trabalham, pesquisam e desenvolvem projetos que – direta ou indiretamente e com atividades que são em sua maioria realizadas por mulheres – giram em torno dessa pauta, com enfoque no cuidado público, social, econômico, cultural, de memória e comunitário, por exemplo, mirando não só a criação de protótipos sensíveis ao tema, mas, principalmente, o fomento e a ativação das redes de cuidado, tendo nas políticas públicas uma possibilidade de propagação e continuidade.

 

Tanto em Montevidéu como em Cali, nos deparamos com experiências concretas de ativação dessas redes. A Casa Cultural el Chontaduro, por exemplo, tem como premissa a construção de uma rede de trabalho coletivo para a promoção do intercâmbio cultural e de experiências que são vitais para o trabalho comunitário e popular. Por isso promovem ações com outras associações, fundações e grupos, como é o caso da relação estabelecida com a Fundación Escuela Canalón de Música e a AFRODES.

Com lideranças negras femininas, as três organizações têm suas sedes em diferentes bairros periféricos de Cali, regiões marcadas por fissuras oriundas da guerra entre forças do narcotráfico, paramilitares e equipamentos atravessados pela corrupção de Estado. Esse cenário gerou uma necessidade de proteção e criação de um grande cordão umbilical. A partir do desejo de superar o abismo social imposto, de promover um lugar em que as subjetividades possam ser desenvolvidas e estimuladas em segurança e de dar aos seus jovens e crianças a possibilidade de imaginar futuros saudáveis e plurais.

 

Compreendendo a arte e a cultura como uma potente possibilidade de transformação e revolução social, as importantes líderes comunitárias, além do trabalho político que exercem na batalha do dia-a-dia, decidiram intercambiar as sabedorias e a diversidade de seus bens comuns para oferecer atividades que não são somente um referencial de inspiração, mas também um meio de produção de qualidade de vida – e de futuro.

 

Crianças, jovens e pessoas acima de 60 anos, moradoras desses territórios em disputa, passam então a fazer aulas para aprender sobre a tradicional música da costa do Pacífico, por exemplo. E é ensinando-as sobre os saberes dos instrumentos que elas criam condições para que sua comunidade possa se fortalecer, ajudando-as a desenvolver valores mais humanos e outras habilidades que também são uma possibilidade de renda – impactando, ao final da cadeia, no giro econômico de seus bairros.

 

Já em Montevidéu, conhecemos o Municipio B, um território que tem como dinamizador o Candombe, importante expressão musical tradicional uruguaia, e também A Casa da Cultura Afrouruguaia, um museu que desenvolve projetos direcionados para as mulheres afrodescendente e que, durante a pandemia, abrigou uma “olla popular”, cozinha comunitária, a fim de alimentar a população que passava fome dentro da comunidade e para além.

Nessa mirada, o La Cuida visa estimular a formação de uma rede translocal de inovação cidadã como essa, “desde o continente, com protagonismo de mulheres, a partir de um olhar interseccional, bem como contribuir com o desenvolvimento de protótipos ligados à agenda do cuidado que sejam replicáveis em diferentes contextos e localidades, de acordo com suas especificidades”³.

 

Enquanto seres coletivos, é fundamental que pensemos em estratégias e ações afirmativas que se voltem para o ensino básico e para as questões de gênero e raça, como a equidade salarial, que visem tirar a sobrecarga de cuidado de cima dessas mulheres, contribuindo para a construção de uma sociedade que se responsabiliza pelo trabalho de cuidado de maneira coletiva, tendo o Estado como um dos seus principais guardiões.

 

Por toda a América Latina, são mulheres campesinas, afrodescendentes e indígenas as grandes lideranças e inspiração de suas comunidades. “Violetas, Francias e Leonores”.  Todas mulheres que correm com mulheres. Que cuidam umas das outras com el corazón que agita su marco⁴. E que, feito rio, percorrem suas águas –  como se previssem o futuro – derrubando as barreiras necessárias para fazer transbordar, com vida, o coração de seu povo.

 


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  1. “Sul orientador”, expressão utilizada pelo Coletivo Etinerâncias no livro Redes de Cuidado – Revoluções invisíveis por uma vida vivível, pág 67.
  2. Trecho retirado do texto REDE ((CC))ARE – Comunidades de Cuidado: ação, repertório e escuta , do Instituto Procomum.
  3. Trecho retirado do texto REDE ((CC))ARE – Comunidades de Cuidado: ação, repertório e escuta , do Instituto Procomum.
  4. el corazón que agita su marco”, verso da canção Gracias a la vida de Violeta Parra, ativista e compositora, considerada a mais importante folclorista e fundadora da música popular chilena.

 

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