Por Cássia Sabino, artista da #AColaboradora e do Portal Umoja
Val Souza é a quarta artista e, a primeira mulher negra, a participar do Programa de Residências LABxS de 2018. Imergida na área da performance, ela usa seu próprio corpo como máquina de guerra em um sistema colonial e escravocrata. Sua arte cria constrangimento, afetações e incômodos.
Ao longo de sua permanência no LABxS (Lab Santista) durante todo o mês de outubro, a artista completou 33 anos de vida vivida – mesma idade que supostamente Jesus Cristo morreu. Em uma de suas performances, Val diz que enquanto vive em um corpo de uma mulher negra, ela morre e renasce todos os dias. Por isso, questiono: Assim como Jesus Cristo, seria Val, em sua pluralidade, a vida e a ressurreição? Durante uma conversa, a performer conta um pouco sobre a bagagem artística que foi construída ao longo desses 33 anos de vidas e mortes.
Cássia Sabino: De que lugar veio a vontade de ser artista e trabalhar com a dança?
Val Souza: Dentro da área de Educação, em uma escola, eu percebi que a dança podia ser um milhão de coisas e não necessariamente passos já definidos. Eu posso te falar que de noite, eu ficava deitada pensando e sonhando sobre estar dançando em lugares. Isso para mim era muito forte.
Eu pequena, com uns 7 ou 8 anos, já pensava nessa dança e, o que mais se aproximava de mim era o Hip Hop. Como a minha mãe era uma mulher negra e do nordeste, eu tive muito contato com as culturas populares. E, depois de um tempo, quando eu já fazia faculdade, eu fui estudar danças populares e fiquei muito encantada com o coco e com o frevo. Aí, eu chegava em casa contando e a minha mãe falava “ah mas isso a gente já faz”… Então, para mim, ser artista é reconectar com essa memória ancestral de coisas que eu queria fazer e de coisas que eu sei que sabia fazer.
Eu posso não ter o recurso necessário ou o dinheiro para viabilizar as coisas, mas, às vezes eu faço umas coisas que penso “Nossa, isso aqui é muito bom porque eu nem treinei e rolou.”, sabe? E não é uma pretensão tipo “Eu já nasci artista!”, não! É que eu estudo muito e sou muito interessada… Inclusive, a sociedade e o mundo todo se colocaria contra isso que eu chamo de arte, mas, isso que eu faço, para mim, tem uma potência tão grande, que ela tá no campo do artístico.
Eu estou recriando formas e modos de pensar estéticas, identidades e discursos a partir da minha experiência e acho que isso é artístico, isso é do plano do artístico, não só no ficcional mas também no plano real.
E o que você entende por arte sendo uma mulher negra?
Por muito tempo a gente viu a arte como algo muito afastado. O que a gente entende por arte hoje, ainda está em um lugar de uma utopia e de uma genialidade. A pessoa precisa ser muito inteligente ou muito esperta para entender e fazer. E talvez, o que eu faço não está nesse lugar da genialidade e as pessoas não conseguem discutir sobre.
Quando eu faço uma performance como a da Piriguete e os curadores não conseguem falar sobre isso, eles não têm conhecimento técnico, nem teórico, nem ficcional, sobre isso que eu estou fazendo. Eu acredito que trabalhos feito por mulheres negras, por corpos negros, também corpos à margem, como os LGBTQ+, e toda uma galera que não está nesse mainstream, criam outros modos de produzir e, isso o que a gente chama de arte, não dá conta mais. Não dá pra você usar os mesmos parâmetros para falar disso que eu estou produzindo. É preciso criar novas narrativas.
Você acha que um artista é um pesquisador?
Eu gostaria que todos os artistas fossem pesquisadores. Eu não consigo separar. Eu sou uma artista pesquisadora ou uma pesquisadora artista. Na verdade, eu sou uma artista pesquisadora. Em um certo momento fui uma pesquisadora artista, mas acho que hoje o que mobiliza minha arte é a pesquisa.
Penso que estamos em um momento no qual precisamos tomar muitos posicionamentos. Do campo que eu venho, que é o campo da dança e da performance (um campo majoritariamente branco), eu acho que as linguagens tem alguns cacoetes… É um campo muito viciado! A galera está reproduzindo a si mesmo o tempo todo. Ninguém pára para olhar e ninguém de fato aprofunda as coisas que são produzidas. Essa parte do vício sobre as coisas que têm sido produzidas, tem a ver com não estarmos muito interessados em produzir novas narrativas e em produzir novas coisas. Ficarmos reiterando dogmas e privilégios.
E também, tem a ver com a capacidade das pessoas de entenderem qual o seu papel artístico. Em um mundo que vemos tantas violências, não dá para eu, como artista, me eximir disso que eu estou produzindo. Aquilo que eu produzo faz referências à certas coisas. Não dá para falar “não, não vou tomar partido sobre algumas coisas”. Eu tenho pensado e, uma das coisas que tenho repetido dentro dos lugares que eu vou de artistas, é que tudo é político.
Pensando nessa questão do artista, sobre o caráter político da arte e a sobre pesquisa, qual é o caminho do processo criativo? Como você consegue criar a partir dessas premissas?
Os meus processos criativos partem de um incômodo e de uma afetação, não necessariamente de uma afetação ruim ou de algo que me incomode negativamente. Mas, se existe alguma coisa que pulsa em mim, eu quero esgarçar e aprofundar.
Então, por exemplo, um trabalho atual que eu estou pensando é o discurso agenciado por mulheres negras, de feminismo negro no Atlântico, tanto nas Américas como fora delas. Como é que os discursos dessas mulheres são tão potentes, que ele se torna um novo discurso humanitário, de respeito e de amor que, para mim, se aproxima de um discurso agenciado por Jesus Cristo na bíblia? Para mim, existe uma bíblia real, que é aquela que as mulheres negras têm escrito ao longo de suas vidas.
Toda vez que uma mulher se compromete a escrever sobre a sua existência, ela está reiterando esse discurso cristão, da lógica cristã, humana e de amor. Nesse sentido, eu fico pensando que me interessa estar muito perto dessas mulheres que estão escrevendo. Que mulheres são essas que estão escrevendo? Não estou falando só dessas que a gente costuma ver… Eu tenho muitas referências: Sueli Carneiro, Vilma Reis, Denise Carrascoza… Posso aqui te dizer inúmeras mulheres que escreveram, que escrevem e que publicam textos.
Mas também me interessa saber como que é para as mulheres que vem fazer aula comigo de quadril, sabe? O que é que elas estão falando sobre suas vidas? Quais discurso elas estão falando? O que é que você tem produzido? E de que jeito tem produzido? Isso é uma coisa que me interessa. E aí dentro disso, o meu processo criativo é: pensar o que é que está me incomodando, me aproximar disso e criar uma relação com isso, seja uma relação de diálogo, seja uma relação de pesquisa com um objeto e, a partir disso, criar ou não alguma coisa.
Muitas vezes eu já chego com uma ideia e o produto vem antes da pesquisa. Por exemplo, eu quero fazer um CD com entrevistas de mulheres negras. O CD vem antes veio antes da pesquisa. Mas isso porque me interessa, talvez, experimentar uma estética nova.