Falei antes de atravessamentos… travessias e transbordamentos no território. Abandonos em aberturas pro céu, cores que encerram portas, janelas e corpos, ocupações que pulsam vida, presenças na ausência. Cores cheias de branco, silêncios, olhares, cruzamentos, histórias…
Longe do território, encerrada em casa, o que me atravessa? Pra além da solidão, da restrição, das adaptações, frustrações, cobranças, medo? Para além do privilégio do isolamento? Para além de ‘dar conta’ dos compromissos, do trabalho reinventado, da tentativa de produzir arte?
Mulheres me atravessam e me despertam, me chamam, me movem. Artistas me emocionam, me lembram de mim, de nós, de nossa potência. Narrativas e experiências, olhares e escutas.
Laurie Anderson me despertou com “Heart of a dog”. Me fez lembrar de um jeito de ser e estar no mundo que é poético, contemplativo, humano, profundo! Me lembrou da pulsação que se esconde nesse corpo desencontrado e que, velada, em pré-batimento, é espaço entre, latência. Em “Una mujer fantástica”, Daniela Vega me descentrou, desconcertou, emocionou. E me chamou pra escuta e pra luta, a necessidade de me desfazer pra estar juntas. Noemi Jaffe, em “O que os cegos estão sonhando” me lembrou a infinidade de ‘dimensões’ da palavra, dos afetos e das tantas camadas que uma experiência de linhagem feminina revela, constrói, quando contada em literatura, quando narrada em poesia.
Elas, entre outras, invadiram pela primeira vez a minha casa nessa quarentena, ampliando meu território, expandindo meu corpo tão dolorosamente adaptado ao confinamento. Elas atravessam, rasgam, rompem limites, abrem as brechas que me levam de volta a mim, e me permitem reencontrar com as companheiras de sempre. Tenho invasoras de longa data… Ana Cristina César, Clarice Lispector, Orides Fontela, Sophia de Mello Breyner Andresen, Cecília Meireles e tantas fazem morada em mim e, latentes, pulsam junto com meu corpo a cada novo encontro. Quando eu lembro de mim, eu lembro delas. Existimos em ciclo, espiral, desejo e falta que nos aproximam, completam e rasgam, curam e sangram.
Eu não sei mais sangrar sozinha.
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