Estou olhando para a página em branco há minutos meu whatsapp tocou seis vezes, levanto novamente para beber água e comer o resto de ontem, como ontem, vômito medo do amanhã, esse mês tive medo de escrever, eu quebrava chinelos quase todo mês em época de chuva, muitas vezes perdia-os para a lama depois consertava com pregos, cujo incômodo eu aceitava em troca da rua, costumava ficar descalço em casa, não ligava ou não adoecia, também na rua muitas vezes não usava, protegia o chinelo com as mãos e corria sem pressa, sem medo e sem razão, assim ele quebrou: pisando em falso ou beijando o chão ou pulando pedra branca pedra preta ou desfilando no meio fio ou chutando a grade da sarjeta ou brigando com o muro ou, ou, ou, ouviram do Ipiranga as margens plácidas. Tirar sarro sempre desarma os chinelos, ela me beliscava quase como um carinho:
– Dessa vez vou te comprar um chinelo de ferro, menino.
A única coisa repleta nesses dias é meu cinzeiro, que não é um cinzeiro, acordo caindo pra cima como se sempre tivesse atrasado, o futuro é um muro um murro uma bota na cara ou só angústia confinada em um quarto-sala vivendo o paraíso virtual, a introversão me salva, no meio da selva me pinto de cinza e finjo ser uma árvore, todo dia pela manhã acesso abismos meu corpo permanece aqui, penetrado por ondas invisíveis a olho nu. Palavra regular é cimento a cidade orquestra roncos, martelos e ventania. O mar é um mantra de trás pra frente eu não estou enlouquecendo, sou programado para queimar durante a leitura, minha tela está quebrada, não consigo ler direito, agora que estava me livrando com papel reciclado, o quanto esse papel higiênico vai custar não faz diferença para o mercado da pilhagem dos números mortos, não teremos tempo de velar, depois de tudo ainda precisaremos pagar a conta, vocês me desculpem mas eu estou na praça, tentando respirar um resto de alegria de graça, sinto cheiro de livro a dois reais, procuro o maior e mais antigo dicionário, ok google qual o significado de desgraça? Por entre os livros ouço uma traça, mais velha do que minha imaginação, diz que comeu a palavra desgraça em cada tradução, na tosse de um Tupi, em diários de prisão, nos destroços do Haiti, na biblioteca em chamas de um judeu alemão e que o que não está no dicionário é que de$graça é com cifrão, que Jesuses agonizam na praça e deus não está morto só virou patrão.
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