Os mares nunca navegados

Sobre a exposição

Essa é uma exposição realizada a partir de uma pesquisa. Uma pesquisa histórica de uma cidade que já foi a terra da liberdade e da igualdade, que já teve quilombos. Uma cidade antiga, uma cidade que é uma ilha, que se ergueu em volta de um porto.

É uma história que fala de lutas, mas que colhe o apagamento histórico como conclusão hegemônica.

Por isso, criamos o nosso próprio porto. Para trazer o ir e vir de nossas memórias, de nossas lutas e de nossos sonhos. Para o ir e vir de histórias e pessoas: lutadores, heroínas, quilombolas, marinheiros, portuários, crianças e trabalhadores – alguns deles nunca conhecemos, pouca gente os conhece, outros, são parte do nosso enredo e até de nossas famílias.

É um porto que permite navegar em nossos mares.

Um porto que é territorial, mas conta também a história de outros portos. De um mundo recheado de desigualdade e injustiça, mas também de muita luta, esperança e bem viver.

Um porto que permite viagens ao passado, ao presente e ao futuro.

Porque a pesquisa também é atemporal. Também dialoga com o hoje e o amanhã. Assim é o tempo.

No primeiro capítulo, mostramos em cartazes personagens históricos da cidade de Santos,  em artes que trazem a história para o presente, que foram colados nas redes sociais e compartilhados nas ruas em uma construção coletiva do GT Marsha.

No segundo capítulo, o fotógrafo Victor Sousa investiga a história de seu bisavô: Alberto Marinho, um marinheiro negro, que sai da condição de escravo para tornar-se um dos práticos mais importantes do Porto de Santos fotografando retratos de família, colando negativos e sobrepondo imagens.

No terceiro capítulo, o jornalista e artista Gustavo Pereira, publica quatro ensaios sobre o corpo e o porto com ilustrações e pinturas autorais.

No quarto capítulo, a fotógrafa, artesã e militante Bete Nagô mostra como os quintais da resistência quilombola urbana se fazem presentes em seu cotidiano e militância.

E, no quinto capítulo, a fotógrafa Luiza Serra caminha pelas memórias de sua infância e pelo sonho de outras crianças negras em fotografias que jogam no contraste da juventude e da nostalgia.

Mares nunca navegados, mas presentes. Seja bem-vinde.

 

 

Conceito

Olhando máquinas; enxergando pessoas

Entradas e saídas de mercadorias.Carros, roupas e sapatos. Alimento, grãos e carne. Entrada e saída de pessoas. Cruzeiros que navegam, a troca de línguas. Corpos que viram mercadorias.

Somos uma cidade que para. Para ver os navios. Um dia, parei na praia e vi pessoas que também paravam para ver a entrada e saída de navios.

Dinheiro, dinheiro e dinheiro. Muito dinheiro.O avanço da tecnologia. Tecnologia que substitui pessoas e engole empregos.

No porto, vemos o maquinário. O  ensacador está no monumento, mas do lado estão as máquinas. E não encontro nenhum ensacador ao lado do monumento. Somente máquinas.
Ao lado, porém, uma fila enorme de caminhões. Máquinas da terra, que também são do porto.
E ali, somente eles, os vendedores. Vejo bicicletas e isopores vendendo água e café. Carros com os porta-malas abertos com lanches, pedaços de bolo e refrigerante. Um pouco de tudo para alimentar o descanso dos caminhoneiros. Um pouco de improviso para muito cansaço, das muitas viagens, das cargas.

Eu vejo solidão.

O porto é muito grande e nos torna pequenos.

Andei por duas horas pelo porto de Santos e pela primeira vez olhei para o céu.

Pare e olhe para cima enquanto caminha pelo porto. A grandeza do maquinário que deixou os prédios e monumentos pequenos.

Sò de imaginar o açúcar, o feijão, o arroz. Tudo passa por ali. Passa porque eu sinto o cheiro do açúcar refinado, do café, do enxofre.

Eu vejo máquinas, maquinários que encostam no céu. Como o porto cresceu tanto? Como chegamos até aqui, com máquinas que dominam os horizontes?

O Porto de Santos. O porto de uma cidade, lembra, de longe ou no dizer, o pertencimento.
A venda dos peixes, a travessia da balsa. Trabalhadores e turistas, turistas trabalhadores. Mas não vemos pessoas no Porto de Santos. E A minha inquietação é não ver pessoas. Somente máquinas.

Um grande robocop.

Quem cuida desse maquinário? Como funciona? Quem o construiu?

Caminho pelo porto e olho para o chão. Você já olhou para o chão do porto? O chão de pedras de sabão, que faz as motos escorregarem. Que ecoa o barulho dos caminhões que passam, ajustando ou bagunçando as cargas. Do vendedor de café, pedalando e tremendo, segurando a sua a bicicleta Barra Forte.

Eu olho para as máquinas e enxergo o porto do passado. Quando o povo frequentava as casas, as docas, as boates, andavam e buscavam as lembranças no Centro de Santos.

Sò vemos máquinas, mas eu vejo migrantes e imigrantes, nordestinos. O povo de fora com seus saberes, o povo daqui batendo os martelos.

Penso nas bordadeiras costurando sacos.

Nas profissionais do sexo, que deviam saber os segredos dos sete mares nas noites viradas com os marinheiros.

Nos cortiços. Que acolheram as pessoas que aportavam mas não queriam voltar.

A molecada correndo, empinando pipa na Veneza da Baixada. Vejo um conjunto de corpos, ideias, sonhos que não estão no mar e nem no maquinário. Mas a gente só consegue ver máquinas. Se ele é só máquinas, ele caminha hora para a água indo, hora para a terra voltando. Por onde passou essa água que vai e volta? Por quais marés passou a água do porto?

O porto também está em movimento. As mercadorias, as pessoas, a água. Os sonhos. Quando escutamos a buzina de um cruzeiro, a manobra de um cargueiro ou o apito do trem, não são as máquinas que falam, são os corpos que gritam.

Texto: Cintia Neli.
Fotos: Victor Sousa

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