O peso do que flutua

 

Como educadoras, as pedras da Chapada Diamantina na Bahia, de onde vim e me dispus a iniciar esta investigação, haviam me ensinado uma lição: pedras são capazes de produzir modos de sentir.

Segui com este ensinamento reverberando, mobilizando uma busca pela ampliação de um repertório sensível coproduzido com as multiplicidades do mundo das pedras. Depois de muitos anos me relacionando e pesquisando com as pedras em Rio de Contas, minha cidade natal no interior da Bahia, tive medo de deslocar esta prática de criação para outros territórios, pois tinha aprendido com o regime de saber técnico cientifico ocidental que era preciso praticar certo distanciamento entre aquele que se propõe a conhecer e o objeto de conhecimento.

 Uma angústia se instaurava, sabia que para a minha produção a proximidade era fundamental. Precisava me misturar com os materiais e seres que povoavam um território, deixar meu corpo o mais poroso possível, ser modificado nestas relações, para então poder criar sobre os efeitos destes encontros. Como tentativa para diminuir os riscos de povoar um território de pesquisa distanciado, fiz do meu campo material e afetivo mais próximo, a cidade de Rio de Contas, um lugar de investigação.  Lá permaneci investigando por mais de uma década, praticando diferentes experimentos artísticos e etnográficos ao habitar uma estranha fronteira entre a arte e a antropologia.

 

 

 

Após ter conseguido cartografar alguns vetores de força que fortalecem o meu desejo de criar, como o de tencionar a concepção ocidental de oposição entre natureza e cultura, pude posteriormente adentrar no desconhecido sem o medo de reproduzir objetificações e distanciamentos, saí do sertão e fui para o mar. Nos últimos anos, passei a permanecer e experimentar os modos de vida na cidade de São Vicente, no litoral de São Paulo. As motivações não mudaram, o que mudou foi o território, o que estranhamente fez também tudo mudar.

Antes mesmo de chegar, já havia sido avisado para tomar muito cuidado com as pedras de São Vicente. A instrução para não as frequentar era clara, pois muitas coisas poderiam acontecer com quem adentra neste mundo, imersão perigosa. Por um tempo, vivi no perigo das pedras. Coloquei meu corpo à disposição dos fluxos de vida que se entrelaçam neste território, um experimento para tornar sensível e ainda mais real um plano onde o meio físico, político e social não se separam, onde as pedras agem como dispositivos de ativação de percepções sobre o meio dos humanos e não humanos.

 

 

 

 

Meu corpo atualizou as percepções produzidas nos encontros experimentados anteriormente com as pedras no Sertão da Bahia, mas as pedras em São Vicente são diferentes, densidades úmidas da primeira cidade fundada no Brasil, pontos de partida dos bandeirantes e das violências praticadas no processo de colonização. Um voo imersivo para conhecer as singularidades das pedras que aqui tudo viram, que tudo sentiram, e que carregam em seus corpos a memória mineral de tempos históricos e geológicos, precisou acontecer. Em outros mundos, as relações com as pedras são estabelecidas de outros modos.

 

 

Fui atravessado pelo gelo quente dessa intensa vida mineral. Escorreguei, enterrei, cai e segui com o questionamento: o que precisa ser sentido e aprendido com as pedras deste território? Em um engajamento primeiro, busquei em diversos acervos icnográficos, imagens onde as pedras que compõem as paisagens da cidade de São Vicente aparecem como tema. Voo zero: aproximação estética da memória coletiva para posteriormente criar novas fotografias afetadas pelas pedras.

Parte deste banco de imagens é apresentado neste relato da experiência, porém não tenho a pretensão de criar nenhum tipo de cronologia, ou veracidade historiográfica, mas sim construir uma experiência capaz de comunicar parte do que foi percebido, sentido e aprendido nesta imersão.

 

 

Criada no ano de 1532, São Vicente foi à primeira vila da América Portuguesa e possui em seu território uma grande diversidade de morros e formações rochosas. As pedras nesta cidade são elementos que historicamente marcaram não somente de modo físico, mas também simbólico, o modo com que as paisagens locais são compostas.

A geografia da antiga Capitania de São Vicente, por exemplo, era demarcada por uma ponta de pedra de morro que avançava praia adentro. Nesta demarcação, pedras do morro do Itararé criavam a fronteira entre as cidades de Santos e São Vicente. Itararé, que em tupi-guarani significa “pedra que o rio cavou”, pedra oca, pedra solapada foi o nome dado a uma das principais praias desta cidade.

 

 

Além da paisagem natural, monumentos históricos locais, como o Marco Padrão e a Pedra da Feiticeira, também possuem estreita relação com as pedras. O Marco Padrão, erguido em memória à colônia portuguesa, foi construído em 1932 sobre uma pequena ilha de pedras chamada de Pedra do Mato. Já à beira-mar, na Praia do Itararé, está situada a pedra da Feiticeira, que ganhou uma escultura em fibra com três metros e meio de altura para representar a imagem de uma velha bruxa que faz alusão à lenda local de que ali era abrigo de uma mulher que praticava feitiços: magia de pedra.

 

 

Ao frequentar as pedras da cidade em uma rotina pouco planejada, mas oferecendo em alguns momentos elementos performativos para compor a relação, experimentei criar novos possíveis.  O PEDRA QUE VOA começava a materializar sensações que iam além do meu sentir. Como viventes, as pedras também se entrelaçam no emaranhado que compõem a história ecológica de um lugar, produzem sensibilidades, modos de perceber e de habitar um território. Diante da ideia equívoca de que a expansão colonial transformaria os povos colonizados em passivos de sua própria história, as experimentações na cidade de São Vicente afirmam que o mundo das pedras, o mundo do outro, é de fato real.

 

 

 

 

 

Acesse o site-experimento: https://www.pedraquevoa.com  

 

 

 

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