Filantropia comunitária como justiça social

 

Desde 2022 o Instituto Procomum faz parte da Rede Comuá, rede que há 10 anos reúne  fundos e fundações comunitárias, organizações doadoras (grantmakers) que mobilizam recursos de fontes diversificadas para apoiar grupos, coletivos, movimentos e organizações da sociedade civil que atuam nos campos da justiça social, direitos humanos, cidadania e desenvolvimento comunitário. Atualmente a rede conta com 16 membros. 

 

Distribuir recursos para que a comunidade execute melhorias em seu próprio território é parte do entendimento de que as soluções para os problemas emergem daqueles que o vivem, o que é um dos pilares da filantropia comunitária. A respeito desse tema, o Instituto Procomum, no dia 21 de setembro  realiazará o Seminário da Filantropia e para melhor alicerçar nossas diretrizes, conversamos com Graciela Hopstein, Diretora executiva da Rede Comuá. 

 

Glaucia: O que é essa filantropia comunitária?

 

Graciela: A filantropia comunitária – ou social – realizada pelos fundos que integram a rede, não é uma filantropia nova. Muito pelo contrário, é uma filantropia que já vem se desenvolvendo há muitos anos. Muito tempo antes das pessoas brancas resolveram apoiar a sociedade civil através de Grants. A filantropia comunitária conversa com uma questão que é absolutamente importante que é a de entender e apoiar o que já existe, colocar mais um grãozinho de areia, uma contribuição nas organizações, grupos e movimentos da sociedade civil que já estão atuando na luta e no reconhecimento dos próprios direitos há muito tempo. Então a filantropia comunitária é uma forma de entender a filantropia. Não se trata apenas de reconhecer o trabalho que é feito pelas organizações de base, grupos e movimentos, mas também de respeitar suas dinâmicas, reconhecer seus ativos e formas de organização, luta e de tratar e mobilizar recursos. É poder respeitar essas trajetórias e histórias que já existem no Brasil, Inclusive antes da colonização, porque se a gente pensa nas comunidades indígenas, negras e quilombolas, vemos iniciativas que já traziam em si formas de organização e de arrecadação de recursos para poder alavancar suas próprias atividades. As irmandades negras eram, de certa forma, isso: pessoas que pensavam em como criar mecanismos de mobilização de recursos para comprar alforrias, por exemplo. 

 

Abordagem de filantropia comunitária é isso “Como ajudar as comunidades apenas colocando um recurso que possa realmente servir para que essas comunidades possam desenvolver ainda mais os seus trabalhos? A gente sempre fala que a gente coloca um real na comunidade e ela triplica esse valor, pois as comunidades sabem não apenas aproveitar muito bem esses recursos, como também reunir esses recursos. O repasse de dinheiro é um ação política pois nós não apoiamos qualquer coisa, apoiamos causas e temas diretamente ligados à questão social e reconhecimento dos direitos e minorias políticas. Colocar dinheiro ou contribuir de alguma forma é um ato político. 

 

Glaucia: Qual a diferença entre a filantropia que a Rede Comuá defende e a chamada filantropia tradicional? 

 

Estamos querendo questionar a filantropia tradicional – mainstream – Porque a nossa ideia não é impor agendas criando dinâmicas de cima para baixo, mas entender quais são as demandas e necessidades e a partir dali apoiar e potencializar agendas. Os fundos que fazem parte da Rede Comuá têm mecanismos muito simples de avaliação, de prestação de contas e de prestação de projetos porque nós sabemos que muitas vezes precisamos sair dessas ideias tecnocráticas para pensar em apoiar de forma mais flexível, para construir de forma colaborativa e em parceria. De alguma forma questionar as relações de poder, pois quem tem dinheiro, tem poder, questionar isso é um ponto de partida muito importante. O dinheiro tem que ser pensado de forma democrática, capilarizando a sua distribuição. 

A filantropia tradicional investe naquilo que dá certo, não corre riscos e, na verdade, a gente aposta em iniciativas inovadoras que apresentam riscos, porque de forma geral os fundo da Rede apoiam aquelas agendas incômodas: agenda racial, agendas indígenas, agendas relacionadas às mudanças climáticas de gênero. São agendas que realmente estão ligadas a mudanças e transformações sociais muito profundas. Trabalhar em parceria reconhecendo a potência que as comunidades, grupos e movimentos de base têm. Esse é o papel da filantropia comunitária ocupa dentro desse ecossistema. 

 

Glaucia: Você mencionou desafios relacionados aos riscos que essa filantropia implica, quais riscos?

 

Graciela: Estamos mexendo com o status quo quando questionamos toda uma forma de agir, mas nós estamos muito embasados na confiança, a confiança é muito importante e na verdade se a gente analisa um pouco a atuação e a trajetória dos fundos da rede, não há muitos casos onde a coisa não deu certo, normalmente a sociedade civil sabe muito bem como utilizar os recursos e fazer esse dinheiro ter uma potência muito maior do que em qualquer outro empreendimento do capitalismo. Questões de inadimplência, problemas e prestação de contas não é uma questão recorrente, é a completa exceção. Eu diria que na maioria dos casos é uma filantropia muito bem sucedida porque tem uma parceria, tem um compromisso e um comprometimento político para trabalhar com essa transformação. Na verdade a gente vê que a filantropia brasileira é uma filantropia que apoia muito pouco a sociedade civil e é uma questão que passa pela falta de confiança, porque a sociedade civil, na verdade, foi muitas vezes atacada no Brasil. desde a CPI das ONG’s que vem sendo atacada recorrentemente ligando ONG’s a lavagem de dinheiro como se essa fosse a realidade dominante e não é isso. A sociedade civil é um componente fundamental para a consolidação da democracia. Se a gente não tem uma sociedade civil fortalecida e estruturada com múltiplos movimentos, grupos e organizações, não teremos nunca uma democracia forte e isso ficou evidente nos últimos anos do governo Bolsonaro que ocupou um espaço que a sociedade civil não conseguiu ocupar por que foi esvaziada e por que sofremos muito desgaste político. Não havia novas lideranças atuando. Dessa forma vemos que a democracia só é possível no nosso território com agendas progressistas. 

É fundamental uma sociedade civil organizada para a implantação de políticas públicas.

 

Glaucia: Observando o mapeamento realizado pelas Rede Comuá, a gente nota que essas redes de filantropia não são muito bem distribuídas no país porque isso ocorre?

 

Graciela: Se pensarmos no mapa das ONG’s, uma pesquisa do IPEA, também vemos uma concentração muito grande de ONG’s no Sudeste. Atualmente temos muito mais fundos no sudeste do que no Centro-Oeste, por exemplo, embora Nordeste está tendo um movimento bastante expressivo mas isso vai ao encontro das dinâmicas de desenvolvimento do país, infelizmente a riqueza está concentrada no Sudeste e, portanto, temos que reorganizar a distribuição de recursos por que nós, de certa forma, refletimos a sociedade: há mais fundos, onde há mais dinheiro.

 

Glaucia: No final dos anos 2000, muitas organizações deixam de existir enquanto outras emergem. Qual a relevância de organizações como o Instituto Procomum? 

 

Graciela: Essa filantropia independente surge justamente para cobrir o vácuo que deixa a filantropia internacional que começa a se retirar do Brasil porque entendem que o Brasil é um país de renda média alta que tem uma democracia estável (olha que paradoxo), que tem organizações e uma estrutura social importante. A retirada foi bastante irresponsável porque deixou um grande vácuo que inclusive teve como consequência o fechamento de muitas organizações da sociedade civil. Organizações como o IP aparecem para pensar em mobilizar recursos para manter os movimentos. Nessa onda surge o Fundo Elas, o Fundo Casa. Há uma primeira leva, até 2010 mais ou menos, que são fundos que chamamos de temáticos. Desse período para frente, surgem muitos novos a partir da experiência dos anteriores. São novos modelos de fundos e filantropia como é o caso da Casa Fluminense e do Procomum, organizações desenvolvedoras de agendas com um pé muito forte no território, consegue mobilizar as suas comunidades com fundos e recursos para o fortalecimento das suas agendas, então é o que a gente chama de fundo comunitários, que na verdade são organizações que não são 100% doadoras. desenvolvem projetos e doam também. Um mecanismo interessante no qual enxergamos a filantropia como um mecanismo de fortalecimento. Tanto o Procomum que tem uma agenda muito importante na comunicação, na cultura, na democratização do acesso a internet, como Casa Fluminense que tem um mecanismo muito forte em advocacy. São organizações muito inspiradoras que demonstram, de alguma forma, que a doação cumpre um papel político  muito importante. 

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