Em uma das estátuas ao longo da orla da cidade de Santos, em São Paulo, vemos o padre José Anchieta retratado de maneira grandiosa e um indígena agachado aos seus pés. Estima-se que existiam entre 600 a 1.000 diferentes grupos étnicos quando da chegada dos portugueses ao Brasil sendo que o censo atual contabiliza 270 etnias. A estátua demonstra que a maneira mais eficaz de tornar um modo de vida dominante é exterminar, reprimir ou violentar outras formas de vida. Quando falamos em cosmovisão, é disso que estamos falando. Eram muitas as cosmovisões que habitavam o mundo antes do processo de colonização da maioria do mundo por uma elite europeia. O fato de que uma visão de mundo tornou-se hegemônica é também a razão de termos chegado onde chegamos. A crise climática é sobretudo uma crise de uma forma de pensar e agir. É o resultado de pressupostos que moldam nossas escolhas enquanto sociedade. Uma visão de que a natureza é inanimada e a nosso dispor. E no entanto, muitas vezes a discussão sobre mudanças climáticas para na tecnocracia. Como podemos então expandir nossa compreensão sobre modos de vida, já que este, que vivemos, é apenas uma possibilidade?
Os mesmos países que foram colonizados são também os que menos emitem gás carbônico, o principal componente para o aquecimento global. Os países fora da Europa que tinham recursos naturais tornaram-se amaldiçoados. Como conta o escritor Amitav Ghosh, a ilha de Bantam, onde nasceu a noz-moscada, passou de uma dádiva da natureza a uma maldição colonial e motivo do assassinato de milhares de pessoas e da ruína de um território, um povo, um lugar, uma língua, uma forma de ser e estar.
No ano passado, durante uma chamada com colegas do setor, houve uma mesa redonda sobre o panafricanismo e os princípios que devem ou deveriam fundamentar esse conceito. Muitos contribuíram, mas tivemos dificuldade em concordar que esse conceito tão versátil e diverso deveria ser restrito apenas às fronteiras da África. Acreditamos que o panafricanismo, se bem aplicado, pode construir pontes e desestruturar sistemas sociais e culturais de uma forma que amplifique as vozes, impacto e identidade dos africanos tanto dentro quanto fora do continente. Para alcançar isso, devemos estender nossas mãos aos povos e culturas com os quais compartilhamos semelhanças intrínsecas em termos de normas sociais, lutas políticas e históricas e aspirações por um mundo melhor.
Por essa razão a parceria da Surge Africa, com o Instituto Procomum coloca as coisas em perspectiva. Mostra que avançamos e atingimos um objetivo.
Para nós da Surge Africa e do Instituto Procomum, o objetivo é moldar um movimento da maioria global junto com nossos aliados, onde vozes e ativistas de base em todo o sul global possam acessar oportunidades, reinventar conceitos e criar novas ideias em torno de estruturas sociais e de governança inclusivas que integrem o desenvolvimento sustentável e inclusivo. No centro disso estão as organizações culturais que moldam narrativas e amplificam as lutas de base através de troca cultural e de conhecimento, campanhas, comunicação deliberada e estratégica, garantindo que nossa visão de mudança seja bem ilustrada para definir o futuro que queremos.
O evento “LAB Narrativas Climáticas: O Sul Global no Centro das Soluções para o Bem Viver” é um chamado para expandir o entendimento do problema. Apostamos que a solidariedade e a cooperação entre povos, territórios e comunidades, e o encontro de conhecimentos e saberes que gera a partir disso, é o que vai nos levar mais longe. Pesquisadores com gestores públicos, lideranças comunitárias, experiências localizadas que podem ser disseminadas. Não se pode mais só pensar global e agir local, precisamos pensar e agir global e localmente.
Pensar em saídas para nós é sobretudo pensar sobre formas de organização, outras institucionalidades onde saberes não hegemônicos tenham papel preponderante e onde o poder seja efetivamente distribuído. Uma vez que as regras estejam claras, aí sim podemos falar de políticas, pois teremos informações, recursos e decisões compartilhadas.
Convidamos todos a se juntarem a nós neste evento e na reflexão sobre as soluções para o bem viver a partir do Sul Global.
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