Reflexões sobre a realidade das pessoas trans no Brasil, a falta de espaço e participação no terceiro setor
POR JOANA CHAVES
No dia 29 de janeiro, foi celebrado o Dia Nacional da Visibilidade Trans, e a pergunta que atravessa meu corpo é: que tipo de visibilidade estamos falando? De acordo com as informações do Dossiê: Registro Nacional de Mortes de Pessoas Trans no Brasil em 2024: da Expectativa de Morte a um Olhar para a Presença Viva de Estudantes Trans na Educação Básica Brasileira, o Brasil continua sendo, pelo 17º ano consecutivo, o país que mais mata pessoas trans no mundo. Dentre essas vítimas, 93% eram mulheres trans e travestis, e a maior parte das mortes ocorreu na região Nordeste. Outro dado importante, dentro da vivência trans, segundo a CNN Brasil, é que, em um grupo selecionado de 1,1 mil mulheres trans, 63,9% não possuíam o ensino médio completo. Dentre elas, 34,7% não chegaram a concluir sequer o ensino fundamental.
Os corpos trans e travestis são visíveis, e os números absurdos de assassinatos contra essa população evidenciam essa visibilidade. O que ocorre, porém, é a um projeto político e de uma sociedade que apoia esse projeto, além da falta de investimento em segurança pública que nos proporcione resultados diferentes dos que têm sido normalizados.
Tenho 24 anos e trabalho desde os 14. Já fui recreadora de festas infantis, babá de crianças de família rica, cuidadora de idosos, faxineira, garçonete, atendente de pizzaria e vendedora em loja de shopping. Tive de amadurecer precocemente, pois, aos 9 anos, fui intitulada a responsável da casa na ausência de minha mãe. Uma casa, duas crianças para olhar e, muitas vezes, o meu colo servindo de apoio para uma mãe solo. Durante os oito anos em que trabalhei prestando serviços para pessoas cis, nunca tive uma colega trans. E foram raríssimas as vezes em que encontrei pessoas trans como clientes nos locais onde trabalhei.
Em 2022, enquanto trabalhava à noite em uma pizzaria como atendente, fui selecionada para a 4ª Edição da Colaboradora Artes e Comunidades, a escola livre de artes do laboratório cidadão do Instituto Procomum, localizado em Santos, o LAB Procomum. Aprendi muito sobre identidade, território e trabalho coletivo com pessoas diversas. Nesse mesmo ano, também iniciei o processo de descoberta da minha identidade de gênero enquanto travesti. Durante o ano de 2022, além de trabalhar como CLT em uma pizzaria à noite, também prestava serviços uma vez por semana, ou até duas, para o LAB, na área de faxina e manutenção do espaço. Durante os seis meses propostos pelo curso, além da Colaboradora, eu passava bastante tempo no laboratório, convivendo com outras pessoas. Esse processo foi muito acolhedor para o momento de transição pelo qual estava passando.
No ano seguinte, recebi o convite para integrar a equipe do Instituto Procomum, ocupando o cargo de relações públicas e produtora do espaço LAB, deixando a pizzaria onde sofria transfobia e assédio diário por parte dos clientes e funcionários. A vida parecia começar a dar certo naquele momento: os assédios desapareceriam, estava no trabalho dos meus sonhos e agora poderia construir novas possibilidades com um emprego estável, ao lado de pessoas que me acolhiam.
Acontece que o LAB está localizado no Brasil, enquanto o Procomum atua também em outras regiões do Brasil e internacionalmente. E o que isso significa? Fora do LAB, não estou apenas entre a equipe que me protege. Quando viajo a trabalho, meu corpo ainda continua exposto e vulnerável a se tornar mais uma estatística nos noticiários policiais. E, claro, por uma questão estrutural, ainda sou a única travesti em uma equipe de quinze pessoas. Por vezes, me pergunto: como cheguei até aqui? Saindo completamente da curva das estatísticas, crescendo nas periferias de São Vicente, me formando como técnica em artes cênicas voltada para o teatro e trabalhando em uma instituição internacional que acredita no cuidado e na participação cidadã como princípios centrais. A resposta que me falta carrega um peso grande: mistura responsabilidade com culpa, talento com boicote, e me faz questionar por que, mesmo trabalhando em uma organização do terceiro setor, ainda sou a única travesti em diversas rodas de conversa e eventos dentro e fora do Procomum.
Quando comecei a trabalhar com filantropia, acreditava que teria a oportunidade de aprender e conhecer outras pessoas como eu. Com exceção das vivências que tive no LAB Procomum, nos encontros externos que já presenciei era possível contar quantas pessoas trans e travestis estavam ocupando lugares de destaque em instituições, de 2 a 4 pessoas, mas, em sua maioria, sempre são pessoas brancas cisgêneras. Nas mesas, reuniões e grandes eventos que presenciei, que propunham pautas sobre segurança pública, participação cidadã, cuidado, levantamento de dados, saúde pública e educação, raras foram as vezes em que a pauta sobre gênero trans e travesti foi levantada. Sempre uma pincelada aqui, um dado não muito aprofundado ali. E, se eu dissesse que já vi alguma pessoa trans facilitando um trabalho ou compondo um lugar de destaque em palestras, estaria mentindo.
Este texto não tem a obrigação de trazer respostas para quem o lê. Na realidade, minha intenção ao escrever esse artigo de opinião é um convite à reflexão para todas as pessoas e/ou instituições do terceiro setor que abordam temáticas como as que citei anteriormente (justiça climática, cuidado, educação, saúde pública, levantamento de dados, segurança pública). Assim como a pauta racial caminha lado a lado com as problemáticas que o governo nos apresenta, a questão de gênero também. Quando falamos sobre racismo ambiental, também estamos falando de uma população trans. Quando se traz à tona a pauta da segurança pública voltada para corpos negros, também estamos falando de gênero. Afinal, 72% dos assassinatos de pessoas trans e travestis são de pessoas pretas e pardas.
Ao longo do tempo em que trabalho com o Procomum, percebo que o problema é muito mais complexo e estrutural, acredito firmemente no trabalho que realizamos dentro e fora da região da Baixada Santista. Por isso, é tão necessário trazer soluções em conjunto e que promovam mais protagonismo trans e travestis.
Por mais que o público majoritário do LAB seja composto por pessoas cis, toda vez que uma pessoa trans ou travesti cruza as portas do laboratório me dá uma ponta de esperança de que a nossa história pode ser diferente. As rodas de conversa que participo com a Associação Donnas da Rua, coletivo da Baixada Santista dedicado a garantir os direitos da comunidade LGBTQIAPN+ na Baixada Santista, dentro do LAB, me fazem perceber que não estou sozinha. E, por meio das trocas com Patricya Nunes, mulher trans de 44 anos, participante da 4ª edição da Colaboradora Artes e Comunidades, à qual tenho o orgulho de chamar de mãe, entendo a importância da minha permanência em espaços que frequento por meio da filantropia. Porque, se minha fala foi importante o suficiente para manter você, que está lendo, até aqui, é porque a “Miau” (apelido carinhoso de Patricya Nunes) começou a construir novas possibilidades de narrativas, chegando aos 44 anos VIVA, presente em reuniões de políticas públicas para a população trans e travesti da Baixada Santista, levando a arte Drag nos espaços públicos e preservando a memória de cada mulher trans e travesti na cultura da cidade.
Obrigada por tudo, Miau. Espero construir um legado responsável e digno assim como você tem feito.
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