Por Cássia Sabino, artista do projeto #AColaboradora
Foto por Thayna Prado
Val Souza colocou seu corpo para dialogar e experienciar o negro e o feminino do território da Bacia do Mercado, Santos-SP, durante o Programa Residências LABxS 2018. Por todo o mês de outubro, ficou claro que todas as suas ações partem da construção social, cultural e histórica de uma mulher negra.
“Eu sou uma mulher negra e, a minha vida, a minha religião, a minha politica, é uma política de mulheres negras.” – Val Souza
São os movimentos, os ritmos, as falas, a energia e a forma de fazer arte de Val Souza que conectam o público com a sua subjetividade. As suas performances e ações propõem uma imersão sonora, imagética, sensorial e gustativa. Destaco a Oficina de Quadril Soltinho, a performance “Can You See It? #deixaapiriguetefalar” e sua Performance Final, como os trabalhos substanciais de sua residência. Todos eles evidenciam que precisamos, urgentemente, como sociedade, mudar nossos olhares e debater os privilégios.
Na performance “Can You See It? #deixaapiriguetefalar”, vestindo um shortinho verde fluorescente e um top rosa, a artista dança em vias públicas ao som do funk, samba de roda e pagode baiano. Ela oferece bebidas alcoólicas e não alcoólicas e convida pessoas que transitam na rua para beber e dançar. Dentre algumas exceções, a reação de incômodo e desconforto do público é constante. Para tanto, fazem-se valer os questionamentos: “O que você sente quando olha esse corpo, essa dança e essa música? O que você enxerga ao ver uma mulher negra?”.
Assim como menciona Val, algumas pessoas podem não compreender como essa performance se enquadra no campo artístico, mas, é certo de que a mesma é um ato político. A discussão sobre a arte como fazer política diz respeito à uma questão de privilégios.
“O que é e o que não é político? Ou pra quem é? Quem é que pode dizer e se afastar do que é político ou não? Isso é uma coisa que eu tenho pensado.” – Val Souza
Colocar-se fora de um cenário político é um privilégio pois, os corpos que se encontram à margem jamais conseguem distanciar-se. É necessário ouvir o que as piriguetes tem para falar. É necessário pensar nas vidas e nos corpos negros. É necessário que sair de um lugar estável para que estabelecer, de fato, uma mudança estrutural. A performer Val Souza objetiva essa mudança e a posiciona como elemento primordial de seus trabalhos. Segundo ela:
“Não existe uma outra mudança se não for pelas mulheres negras” – Val Souza
As performances de Val Souza também dismitificam o conceito de performance. Por exemplo, em “Deixa a Piriguete Falar” ela performa algo que eu estou acostumada a fazer: dançar na rua. E transformou isso em performance porque dançar na rua também é arte.
Normalmente, temos a ideia de que a arte está muito distante de nós, que está apenas no campo das Belas Artes. E as propostas de Val Souza permitem enxergar a performance mai próxima de nossas vidas.
E isso está atrelado ao seu jeito de viver e encarar as coisas. O que também é transformador porque muitas vezes temos a hábito de nos policiar – eu fui educada para isso, por exemplo. Quando vejo o trabalho de Val Souza e sua bagagem artística percebo que ela não tem auto-policiamento e isso evidencia-se em alguns dos seus hábitos diários que presenciei em sua residência: como escutar pagodão em volume alto, usar shortinhos, fazer faxina cantando.
Em resumo, o trabalho de Val Souza me ajudou a confirmar as qualidades divinas de uma mulher negra. Algo que talvez já sabia, mas ela potencializa as nossas crenças.
E pessoalmente, como artista negra, vejo que todo o seu trabalho, pesquisa, vivência e estilo de vida Val Souza abrem novas possibilidades de campo de trabalho como mulher negra.
Mulheres negras na arte: multiplicidade versus precariedade
Assim como a performer Val Souza, eu, Afreekassia, sou uma mulher negra artista. Embora nossos campos artísticos sejam diferentes, ela atua na dança e eu na música, ambas vivenciamos e acessamos o artístico a partir de um corpo negro e feminino. Esse corpo se manifesta e se relaciona com o entorno energeticamente, socialmente, politicamente e artisticamente.
Além da energia preta que nos nutre, há também outras coisas invisíveis que se aglutinam aos nossos corpos e às nossas almas. Assim como sugere uma das performances de Val Souza, questiono: Como falar de coisas invisíveis?
Conversamos muito e percebemos que quanto mais nós, mulheres negras, nos envolvemos com a arte, mais linguagens artísticas, que não necessariamente estão incluídas no nosso campo artístico, mais atribuímos aos nossos trabalhos.
“Nós vamos agenciando várias outras linguagens para poder criar um arcabouço visual e imagético daquilo que a gente quer ir e nisso, vamos em inúmeras tentativas” – Val Souza
Nós desenvolvemos um caráter multiartístico que é consequência da nossa subjetividade. Há séculos estamos acumulando uma carga pesada, sofrida e plural. Essa carga não é só da Val, muito menos só minha; é uma carga que é fruto das vivências de todas as mulheres pretas e, portanto, é sentida por todas. Quando recorremos à arte para exteriorizar nossos sentimentos coletivos e/ou individuais, acabamos articulando múltiplos formatos e conceitos de produção artística.
Um exemplo disso é a nova performance de Val Souza, a qual foi executada pela primeira vez, no dia 31 de outubro, dentro da capela do Instituto Procomum. Val fez um recorte de vários discursos de mulheres negras e os declamou. As pessoas que assistiram à essa performance seguravam uma vela branca acesa e assistiam uma sequência de fotos pessoais da performer. As reações foram de choro, de reflexão e de extrema atenção. Ao fim, foi tocada uma música, produzida por Stefánis Caiaffo, na qual Val acrescenta mais considerações sobre o que é ser mulher negra. Foram misturados elementos visuais, sonoros, materiais e sensoriais. Elementos que não necessariamente fazem parte do campo da dança. Val ao menos sequer apareceu durante a performance. Ouvíamos apenas a sua voz, que repetia constantemente a frase de Marielle Franco: “Não seremos mais interrompidas”.