UM FUNDO PARA FINANCIAR O COMUM?

O desafio é integrar o social e o financiamento em um novo paradigma

por Rodrigo Savazoni
Diretor-Executivo do Instituto Procomum

O PLV 31/2018, aprovado em dezembro de 2018 e sancionado um ano atrás, em janeiro de 2019, estabelece as bases para a criação de fundos patrimoniais no Brasil, criando uma regulamentação sólida tanto para instituições doadoras como para as que necessitam captar recursos recorrentes para a manutenção de suas atividades de finalidade social. Em seu primeiro ano em vigor, porém, talvez em função da crise generalizada que estamos vivenciando, sua aprovação não gerou um debate amplo sobre a implantação desses fundos em nosso país.

A tendência, óbvia, era que, caso houvesse, esse debate ficasse concentrado entre os doadores, aqueles que têm recursos para constituir uma solução como essa, excluindo-se assim as organizações que poderiam ser beneficiadas por esse modelo, cuja finalidade é exatamente garantir a efetiva sustentabilidade operacional de organizações da sociedade civil (OSC) e a irrigação perene de causas sociais. Daí a importância de, neste 2020, nós, que temos participado da construção de organizações sólidas vinculadas a causas sociais, lançarmos um novo olhar a esse modelo de financiamento. Afinal, são muitos os aspectos positivos dos fundos patrimoniais, como ampliar a independência das organizações; proteger o patrimônio constituído (uma proteção para que seja efetivamente posto em uso para quem mais precisa) e aumentar a profissionalização.

O Instituto Procomum (IP) desde sua fundação, em 2016, vem investigando modelos de OSCs com o objetivo de desenvolver soluções de governança adequadas ao nosso tempo político-cultural. Nossa inquietação, partilhada com pesquisadores e organizações parceiras, se assenta no diagnóstico de que há uma crise institucional em curso cujo efeito é a geração de uma brecha de cidadania e democracia em nossos países. Nestes nossos anos iniciais de vida, buscamos ao lado de alguns parceiros promover o ORG.LAB, uma iniciativa ainda incipiente cujo foco era tecer uma rede de trocas entre pares e assim gerar fortalecimento mútuo das novas organizações do terceiro setor. Nessas conversas embrionárias, a questão da captação de recursos e da sustentabilidade a médio e longo prazo se afirmou como a mais premente, e por isso queremos aprofundá-la.

O comum, razão de ser de nossa organização é, entre outras abordagens possíveis, um modelo de governança equidistante do mercado e do Estado, mas que pode existir “entre” essas duas outras dimensões (ou contra, a depender do ângulo que se olhe). Sabemos que ao longo dos anos, em específico no Brasil, dois foram os principais modelos de sustentabilidade das OSCs: financiamento social privado e as parcerias com o Estado na execução de políticas públicas. A criação da lei de fundos patrimoniais impacta ambos os modelos, e abre uma brecha interessante, ainda pouco explorada, que é a constituição de fundos patrimoniais com foco programático. No Brasil, creio que exemplos desse formato (anteriores à aprovação da nova legislação), são o Fundo Baobá, voltado para a igualdade racial, e o Fundo Brasil de Direitos Humanos, cujo nome é auto-explicativo de sua missão.

De acordo com analistas de financiamento do terceiro setor, a nova legislação deve garantir o surgimento apenas de fundos vinculados a instituições privadas, como as fundações estruturadas a partir da herança de empreendedores de sucesso, ou públicas, como museus e universidades. Nossa aposta é que essa legislação também pode resultar na constituição de outros fundos setoriais cuja finalidade seja irrigar um determinado campo de ação da sociedade civil. Mas como fazer isso?

Temos buscado, no último ano, averiguar caminhos possíveis para a constituição de um Fundo Patrimonial do Comum, cuja finalidade seria alimentar iniciativas sociais nas pontas do sistema, fazendo com que recursos de filantropia acionem iniciativas cidadãs que podem modificar a vida das cidadãs e cidadãos nos territórios excluídos de nosso país. Cada vez mais, a partir de nosso trabalho, percebemos o comum como um princípio e uma lente de percepção do mundo que contribui para uma mudança de paradigma para diferentes áreas do conhecimento e formas de existir e atuar.

Como diz Thomas Mehwald, no documento Democratic Money and Capital for the Commons, coordenado por David Bollier e Pat Conaty, “fazer o comum (commoning) é um processo de imaginar e criar recursos compartilhados. Financiamento é prover as pessoas para que elas atuem pelo comum. Isso é muito diferente do que comprar ou criar ativos, ou realizar empréstimos convencionais. É financiar um processo”.

Reconstruir o tecido social que produz uma sociedade sadia é um processo, cujos resultados nem sempre são sentidos no curto prazo. É semear um campo, muitas vezes, pouco fértil, acreditando que o acúmulo de sedimentos e cuidados fará novamente a terra verdejar. O que temos claro é que financiar o comum não é, portanto, irrigar apenas um segmento, mas o manancial que produz a liga da vida em sociedade. É construir uma ponte por sobre essa brecha de confiança que corrói nossas democracias, e sobre esse sistema que dizima a vida humana.

Partimos da oportunidade gerada pela legislação dos fundos patrimoniais, pelo que ela aponta no sentido de ser um mecanismo potencialmente eficaz para o financiamento de processos, mas não queremos ficar presos aos modelos privado e público. As redes digitais fortaleceram, nos últimos anos, formas de doação direta, de cidadão para cidadão, que vêm crescendo ano a ano. Embora existam análises de que o crowdfunding não se consolidou no Brasil, como em outros países, acreditamos que essa modalidade de fomento segue sendo uma possibilidade interessante de mobilização e engajamento social para o financiamento de causas. Ainda mais se estiver associada a um mecanismo que gere recursos recorrentes (como os fundos patrimoniais setoriais) e, portanto, sustentabilidade para as iniciativas.

Como esse movimento poderia se aproximar da constituição de fundos comuns, ou de fundos de fomento do comum, de iniciativas auto-organizadas? Há casos internacionais muito relevantes, que podem nos inspirar, como é o caso da campanha de Bernie Sanders nas prévias democratas, que obteve doações de quase 1 milhão de pessoas. É o candidato democrata que obteve o maior financiamento entre os concorrentes, com uma média de US$ 18 por doador. Temos relatos que após a eleição de Trump, nos Estados Unidos, o volume de recursos de doações diretas para instituições de direitos sociais cresceu consideravelmente.

Outro exemplo é o da Gabinetona, de Belo Horizonte, que articulou por dois anos quatro diferentes mandatos na câmara dos vereadores da capital mineira. Em 2018, a partir de um percentual recolhido dos salários dos servidores associados a esses mandatos (inclusive do salário dos próprios parlamentares), constituiu-se um pequeno fundo que irrigou com bolsas de 5 mil reais 19 iniciativas cidadãs locais. O modelo é muito semelhante ao de microbolsas que temos desenvolvido a partir dos Circuitos de Inovação Cidadã que criamos aqui em Santos (e que foi replicado em outras localidades, a mais recente delas na Praia de Iracema, em Fortaleza) e recebeu o nome de “Cê Fraga?”. Esse modelo não poderia inspirar, a partir de legislação específica, um caminho para a gestão de emendas parlamentares?

Essa pergunta nos aproxima do matchfunding, em que empresas e/ou governos complementam com recursos iniciativas que obtenham apoio econômico por meio de campanhas de arrecadação.

Recentemente, também acompanhamos a constituição no Brasil da rede dinheiro e consciência, cujo objetivo prioritário é a criação de um modelo bancário baseado em indicadores sociais e não meramente financeiros. Inspirados pelo exemplo do Triodos Bank, surgido na Holanda nos anos 1970, o processo em curso no Brasil tem sido liderado por organizações consolidadas do terceiro setor em parceria com investidores sociais privados. Nos parece que esses atores teriam interesse em uma discussão sobre o financiamento do comum, uma vez que o próprio Triodos Bank tem investido nessa agenda, sendo apoiador de inúmeras iniciativas europeias que evocam a bandeira dos bens comuns, inclusive da International Association for the Study of The Commons (IASC-Commons), criada pela nobel de economia Elinor Ostrom, e à qual nossa organização é associada.

Dentro de uma agenda mais ampla, ainda temos outras temáticas que poderíamos focalizar, como a das cooperativas 2.0 (co-ops) e Bank of the Commons, uma iniciativa aberta que envolve diferentes organizações e pessoas que tem como objetivo transformar os pagamentos e os sistemas monetários, apoiando movimentos sociais cooperativos. O elemento central do Bank of the Commons é o uso do FairCoin, uma criptomoeda baseada no Blockchain, como o BitCoin, mas que é ambientalmente e socialmente sustentável. Todo o seu sistema é baseado na colaboração e não na competição: uma moeda aberta, transparente e gerida por meio de uma comunidade horizontal auto-organizada.

Exemplos, como podem ver, não faltam. O objetivo deste artigo é abrir uma discussão sobre modelos de fundos que possam servir a organizações semelhantes à nossa para execução de suas atividades. Entendemos que um dos grandes desafios dos próximos tempos é integrar o social e o financiamento em um novo paradigma que nos permita reverter a marcha da humanidade - que hoje parece inexorável - rumo ao abismo. O que não será possível se não encararmos esse importante debate sobre para onde está indo o dinheiro que nossas sociedades produzem.

810 541 Editor
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