8M: flores ou revolução através da construção coletiva?

Por: Soledad

Já é de muito tempo que as mulheres, os espaços comunitários e os direitos da natureza sofrem com a sujeição aos mecanismos de poder do mercado e às suas políticas de austeridade. Um mercado que, hoje, se afirma democrático, mas que se explica dentro da lógica destrutiva da globalização e da modernização impostas pela hegemonia capitalista.

Em fevereiro de 1908, nos Estados Unidos, as mulheres vão às ruas manifestar-se por direito ao voto e melhores condições de trabalho, convocando a população para o “Dia da Mulher”. No ano seguinte, em 1909, 2.000 mulheres protestam, em Nova York, por rotinas de trabalho mais dignas e seguras – à época, a jornada de trabalho delas contabilizava 16 horas. Em 1910, durante a Conferência Internacional das Mulheres, na Dinamarca, Clara Zetkin, jornalista, marxista e feminista histórica alemã, convocou as trabalhadoras de diversos países, ali reunidas, para organizar um dia especial das mulheres, visando promover o direito ao voto feminino. Em 25 de março de 1911, em Nova York, um incêndio na fábrica têxtil Triangle Shirtwaist, matou 146 trabalhadores, sendo 125 mulheres, entre 13 e 23 anos, em sua maioria, imigrantes judias e italianas, fazendo arder a luta das trabalhadoras operárias americanas, lideradas pelo sindicato International Ladies’ Garment Workers’ Union – União Internacional de Mulheres da Indústria Têxtil. Em 8 de março de 1917, com a eclosão da greve das tecelãs, em São Petersburgo, Rússia, a Revolução Russa é impulsionada. 

Foram esses marcos e o potencial de organização do operariado feminino, deflagrado no final do século XIX e no atravessar do século XX, os verdadeiros balizadores que levaram a ONU, em 1975, somente, a reconhecer o dia 08 de março como o Dia Internacional das Mulheres.

O 8M, portanto, é um dia político, que, lamentavelmente, foi expropriado pela lógica neoliberal de um mercado, que, a cada ano, induz a sociedade a tecer um olhar romantizado sobre as mulheres, estimulando um consumo acrítico, gerando o apagamento de suas contendas e o cercamento das pautas que ainda precisam ser garantidas como direitos.

Hoje, as mulheres seguem sendo as protagonistas das principais lutas pela transformação e democratização social e em defesa dos bens comuns. As ações organizadas e lideradas por mulheres, por todo o mundo, denunciam anos de exploração patriarcal – e colonialista! -, determinante para as desigualdades sociais oriundas do capitalismo. Contribuindo ativamente para o desenvolvimento do bem viver, pensando a sustentabilidade econômica, política e social da Terra e combatendo uma sociedade que se vale da necropolítica, que prega a “privatização” da vida e a destruição dos corpos, como nos ensina o filósofo camaronês Achille Mbembe.

Em diversos lugares do mundo, encontramos exemplos importantes dessa força social, é o caso das ollas comunes  ou ollas populares – cozinhas comunitáriasorganizadas por peruanas e chilenas, nos anos 1980, e, mais recentemente, durante a pandemia da COVID-19, pelas uruguaias, por exemplo, para alimentar a população que vivia em situação de insegurança alimentar em suas comunidades. Um outro bom exemplo, é a experiência  do Camboja, quando mulheres se organizaram para criar associações de crédito autônomas que funcionam como uma espécie de banco comunitário, os tontines, oferecendo dinheiro à população que não pode acessar os grandes bancos, impactando, ao final da cadeia, no giro econômico do próprio país e garantindo alguma dignidade às pessoas que são oprimidas pelo Estado.

Esses exemplos, são ações que refundam a vida coletiva frente à acumulação primitiva e a maneira como a sociedade se relaciona com os bens comuns e com o trabalho reprodutivo, nos ensinando a importância de comunalizarmos as tarefas reprodutivas e a força produtiva, construindo alternativas sólidas e de impacto social.

É importante frisarmos que, mesmo diante dos inúmeros avanços que já foram conquistados pelas lutas das mulheres, como o direito ao voto, ou o direito ao aborto protegido pela Constituição Francesa – decisão tomada na última segunda-feira, dia 4 -, o cenário mundial ainda oprime esses corpos, especialmente os de mulheres negras, trans e indígenas. 

No Brasil, por exemplo, segundo a 10ª edição da Pesquisa Nacional de Violência contra a Mulher, encabeçada pelo Instituto DataSenado, em parceria com Instituto Avon e Gênero e Número e o Observatório da Mulher contra a Violência do Senado Federal, em de 2023, 25.458.500 mulheres declararam terem sofrido algum tipo de violência familiar ou doméstica, totalizando 30%, dessas, 61% não foram à delegacia, por exemplo. 

 

Também no Brasil, recentemente, o trabalho de cuidado foi tema da redação do Exame Nacional do Ensino Médio – Enem, fazendo com que ativistas negras por todo o país se posicionassem contra o apagamento histórico e sistêmico presente na maneira em que o tema foi enunciado – “Desafios para o enfrentamento da invisibilidade do trabalho de cuidado realizado pela mulher no Brasil”. A discussão ganhou força porque houve uma percepção entre as ativistas negras de que o mesmo se apresentou somente com uma abordagem de gênero, invisibilizando aquelas que compõem o grupo majoritário à frente dessas atividades, as mulheres negras.

Segundo pesquisa feita pela Pnad-c – Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua, em 2019, foi indicado que 45% do trabalho de cuidado no país era exercido por mulheres negras, 31% por mulheres brancas e 24% por homens brancos e negros. Deixando claro que são as mulheres negras as reais protagonistas da narrativa que se constrói em torno do cuidado e do trabalho de cuidado e o quanto ainda precisamos avançar nessa discussão.

No livro “Mulheres, Raça e Classe”, a ativista negra, professora e filósofa, Angela Davis, nos provoca a refletir sobre esse tema considerando os impactos da escravidão sobre os corpos das mulheres negras escravizadas. Justificando que o enorme espaço que o trabalho ocupa hoje na vida das mulheres negras reproduz um padrão estabelecido durante os primeiros anos de escravidão (Davis, 2018: 17), período em que essas mulheres eram mão de obra tanto para o trabalho doméstico, quanto para o trabalho agrícola, além de também serem consideradas instrumentos que garantiam a ampliação da força de trabalho escrava (Idem: 19).

Diante desses atravessamentos, contribuir para o fortalecimento e o surgimento de “novos agoras”, tendo como premissa o apoio à luta de equidade e igualdade racial e de gênero e a preservação da natureza, é vital para a sobrevivência da humanidade e dos ecossistemas.

Nós, mulheres, precisamos que a sociedade, sem distinção de gênero, se responsabilize pelos trabalhos de cuidado. Precisamos de mais mulheres ocupando os espaços de poder, públicos e privados, da sociedade. Precisamos de acesso à saúde, à moradia e à educação. Precisamos que a arte e a cultura sejam reconhecidas como uma potente possibilidade de transformação e revolução social. Precisamos que as nossas diversidades sejam respeitadas. Precisamos de políticas públicas afirmativas que garantam nossos direitos. Precisamos que nossas crianças não sejam molestadas. Precisamos dos nossos bens comuns preservados. Precisamos que os nossos corpos nos pertençam. Precisamos do fim do patriarcado. Precisamos que a luta seja coletiva. Precisamos do cessar fogo na Palestina. Precisamos permanecer vivas!

Por todo o mundo, Marielles, Erikas, Angelas, Sônias, Alexandras e Conceições: todas mulheres que correm com mulheres. Que cuidam umas das outras com el corazón que agita su marco. E que, feito rio, percorrem suas águas como se previssem o futuro, derrubando as barreiras necessárias para fazer transbordar, com vida, o coração de sua gente.

Viva as mulheres!
Viva o Dia Internacional das Mulheres!

 

2128 1200 glaucia
Compartilhar:

Comente

Pesquisar por