Confira como foi o intercâmbio entre Instituto Procomum e West Central Initiative no inverno glacial de Fergus Falls, Minessota, nos Estados Unidos
A filantropia comunitária é um eixo central da atuação do IP, acreditamos na redistribuição de recursos e fortalecimento de territórios e comunidades como pilares essenciais para a transformação social. A entrada do Instituto Procomum para a Rede Comuá, em 2021, marcou o início de uma jornada de conexões e aprendizados que têm ampliado nossa atuação e perspectiva sobre o tema
Dentro desta agenda, o IP é um dos co-fundadores da Aliança Territorial, uma coalizão de organizações que compartilham valores como o repasse de recursos para a ponta, o trabalho direto com comunidades e a promoção de metodologias que fortalecem a cidadania.
E foi durante um encontro da Aliança, realizado no primeiro semestre de 2023 em Florianópolis, que tivemos a oportunidade de conhecer a CCA – Connecting Communities in Americas – uma rede que conecta fundos comunitários em toda a América Latina, América Central e Estados Unidos – e tem como foco principal a troca de experiências e conhecimentos entre organizações que atuam na filantropia comunitária.
Foi neste contexto, que eu, Victor Marinho, Gerente de Inovação Cidadã do IP, e Fabrício Freitas, Diretor de Recursos do IP, fomos convidados para visitar Fergull Falls, Minessota, nos EUA, em um intercâmbio com os parceiros do West Central Initiative.
Fazendo as malas para o inverno de Minessotta
Os desafios para a viagem e o intercâmbio começaram pelo clima. O Estado de Minessotta, na região Mid West dos E.U.A, tem um dos invernos mais rigorosos do mundo. Saímos do verão de 35º graus de Santos-SP para o inverno de -20º graus de Fergus Falls. Sim, você leu certo: as temperaturas são extremas, com ventos fortes e muita neve.
Mas a nossa recepção foi calorosa. A equipe do West Central preparou jaquetas, botas e meias para nós (que sem elas a viagem se tornaria impossível) e nos buscaram no aeroporto.
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O bucólico e polar inverno de Minessotta; muito frio, vento e neve, mas lindas paisagens naturais
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Amanda nos recebeu no aeroporto com roupas de inverno e nos levou para um saboroso café; uma boa recepção resolve qualquer problema
Fergus Falls é uma cidade de 13 mil habitantes, localizada no condado de Otter Tail, que reúne outras 22 cidades, todas pequenas. A região é conhecida pelo inverno rigoroso, paisagens naturais e vida comunitária vibrante. Pela região, temos o rio Otter Tail e mais de mil lagos (infelizmente só podemos ver alguns, todos congelados), o que a torna um destino popular para atividades ao ar livre e turismo.
A região do condado de Otter Tail tem forte tradição de engajamento comunitário e filantropia. A economia local é impulsionada pela agricultura, manufatura e turismo. A área também se destaca por iniciativas de desenvolvimento comunitário, lideradas por organizações e fundações locais. Tradicionalmente, pelo frio e por estarem em uma região distante, existe o sentimento e práticas cooperativistas na região.
Vale dizer que nos Estados Unidos, a cultura de fundos comunitários é bastante consolidada, com metodologias e práticas que têm inspirado iniciativas ao redor do mundo. No Brasil, o IDIS (Instituto para o Desenvolvimento do Investimento Social) tem sido um importante agente na promoção dessa cultura, com o apoio da Mott Foundation e o projeto Transformando Territórios, que inclusive gerou uma cartilha sobre como estruturar fundações comunitárias.
É nesse contexto de trocas e aprendizados que nos preparamos para um intercâmbio com uma fundação comunitária do interior dos EUA, buscando entender melhor suas práticas, desafios e conquistas.
Andando sob a água
Em nosso primeiro dia oficial de intercâmbio, fomos convidados por Ben Schierer, ex-prefeito da cidade e diretor de parcerias cidadãs da organização, para um passeio de carro. Samantha VanWechel-Meyer, diretora de filantropia comunitária, também nos acompanhou.
Além de conhecermos um pouco a história da cidade e da região, paramos para visitar a escola municipal, a biblioteca comunitária, além de uma aventura sobre um lago congelado – uma tradição local. Andamos sob a água congelada.\
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Biblioteca municipal de Fergus Falls
A estrutura da escola municipal é impressionante. Só para terem uma ideia, a escola conta com duas quadras de hóquei de gelo. A biblioteca comunitária parecia um laboratório cidadão: livros que podem ser consultados e emprestados; espaço para uso de computadores, jogos, brinquedos e lazer para crianças crianças ; espaço maker; impressora comunitária; e alguns protótipos comunitários que são expostas ali.
Dava para sentir a vida e a importância do local pela população. Estava cheia de gente em uma segunda-feira pela manhã.
Neste momento, ainda no primeiro dia de viagem, minha intuição dizia que este é o verdadeiro sonho americano: um país rico e potente é formado também por suas comunidades e por colaboração e mão apenas por competição e meritocracia individual.
Apesar de uma visita de pouco tempo, dava para perceber toda esta potência em educação e esportes a partir de vínculos locais e comunitários. Justamente o que defendemos no IP.
E a verdade é que hoje, estas ações de cunho comunitário estão ameaçadas pela nova administração federal.
Fomos apresentados à equipe do West Central Initiative em um almoço tradicional Pot Lok, na qual cada um traz um prato preparado em casa para partilhar a refeição. Fomos apresentados aos sabores locais.
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Assistimos uma partida de Hóquei colegial. O esporte é certamente um dos pilares para as comunidades na região. É incentivado desde cedo nas escolas, apoiado por ligas e associações, com vínculo às universidades
No período da tarde, conversamos sobre as missões e valores de ambas organizações, em uma aproximação institucional. Havíamos agendado visitas à outras organizações locais, mas pelas baixas temperaturas e neve, as atividades foram online. Conversamos um pouco sobre ansiedade climática com ativistas locais e membros da West Central Initiative – já no primeiro dia, deu para perceber que o intercâmbio poderia render boas parcerias.
Morris Model: união para a transição energética local
Como parte da programação do intercâmbio também visitamos a cidade de Morris, cerca de 1 hora de distância, especialmente no campus da Universidade de Minessotta para conhecer o seu plano de transição energética.
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Na foto com Troy Goodnough (esq.) Direto de Sustentabilidade da Universidade de Morris e Griffin Peck, agente de resiliência climática do West Central Initiative
Vale dizer que hoje a universidade conta com 30% de estudantes indigenas bolsistas, como parte da política de reparação pelas violências cometidas naquela região no passado.
Na universidade fomos recebidos por Troy Goodnough, diretor de sustentabilidade da universidade desde 2006. Com muito entusiasmo, nos mostrou os projetos de energia limpa da universidade. A transição energética na região foi firmada a partir do Morris Model, uma parceria entre organizações, empresas e governo para reduzir os impactos ambientais na região.
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Geradores de energia eólica da universidade
“A universidade conta com um vasto programa de sustentabilidade, que vai desde ações acadêmica e de pesquisa, projetos com estudantes, com a comunidade e também a implementação de soluções nos edifícios da própria universidade, como exemplo prática de transição”, contou Troy.
Conhecemos as dependências: de prédios antigos totalmente restaurados e adaptados para a energia verde até novas instalações construídas do zero; modelos de coleta de reciclável e compostos orgânicos; estruturas de captação de energia eólica, solar e gás; de pequenos protótipos até grandes estruturas. Sim, a transição energética já é uma realidade.
O campus já é 100% livre de emissões de carbono desde 2020, produz mais 10 milhões de kilowatts por ano por duas hélices de energia eólica e recebe quase meia tonelada de compostos orgânicos em seu programa de compostagem. E também conta com uma série de painéis solares. Hoje, a universidade produz mais energia do que precisa e estuda como distribuí-la em novos projetos.
Também conhecemos as pesquisas dedicadas á agricultura e pudemos conhecer tratores e carros elétricos e um trator automatizado para colheita de milho.
Neste link, você pode encontrar todos os projetos desenvolvidos na universidade.
Um dia de LAB Procomum no West Central Initiative
É claro que não deixaríamos de perder a oportunidade de apresentar um pouco de nossas metodologias durante a viagem. Nós somos seres que gostamos de compartilhar conhecimento e abrir o código do nosso fazer. E a ideia foi super bem recebida pela organização anfitrião do encontro.
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Um mini LAB Tempestade nos escritórios da WCI
Nos colocamos ao desafio de fazer uma breve apresentação sobre os conceitos do comum e da inovação cidadã e realizar um mini laboratório tempestade (quando juntamos pessoas em torno de um problema comum para apontar soluções colaborativas e interdisciplinares) em apenas dois períodos. E funcionou.
Optamos por lidar com alguns problemas que a própria equipe do West Central Initiative vinha enfrentando para a implementação e execução de seus projetos, especialmente quando envolviam participação ou envolvimento cidadão.
Primeiro listamos os problemas e depois as soluções que já existiam dentro e fora da organização. Por fim, elegemos quais problemas iriamos enfrentar.
Criamos um breve plano de execução e implementação dos nossos protótipos – decidimos chamá-los assim, mesmo dentro do ambiente institucional, para permitir o erro e o experimento, inclusive. E daqui um mês vamos nos reencontrar para compartilhar os resultados.
Um grupo vai pensar mecanismos para conseguir mais voluntários; outro, ações de apoio para utilização de material adequado para pacotes de alimentos; e o último pensar soluções baseadas no diálogo para a transparência política da instituição. Já deu vontade de replicar tudo por aqui.
Música brasileira como possibilidade estética de ativismo
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Fabrício Freitas, diretor de recursos do IP, ministrou uma oficina de imersão de música brasileira. No final, exibimos o curta Neurótico e Consciente, do Olha Marginal
Fabrício Freitas, nosso diretor de recursos, preparou uma oficina especial sobre a história da música brasileira: das tradições culturais, formação do samba, bossa nova, da mpb como possibilidade de resistência, da música negra dos anos 70 e 80 e do funk e hip-hop como elementos essenciais para abranger toda a diversidade e riqueza cultural de nossa população. Ufa, muita coisa, mas foi legal demais.
Além dos membros da equipe do West Central, tivemos a presença de Leila Awadalah, dançarina e coreógrafa, criadora do projeto Body Wutani, que é tocada por ela e sua irmã, ambas palestinha e filhas de um refugiado e que investigam a partir da dança a relação entre território/terra natal e o corpo.
Nossa oficina foi encerrada com a exibição do filme “Neurótico e Consciente”, do Olhar Marginal, que aborda a violência institucional contra artistas do funk na Baixada Santista.
Que seja apenas o começo de uma bonita parceria
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Visita ao centro de triagem e reciclagem da cidade
No último dia do encontro, saímos com uma sensação dupla: a semana parecia meses, afinal, conhecemos muita gente, aprendemos muito e compartilhamos; por outro lado, uma semana foi muito pouco, e a vontade é de seguir estreitando a parceria.
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Ateliê artístico do centro de reciclagem têm as máquinas open source do projeto Precious Plastic
Acreditamos que nossa metodologia e experiência em articulação comunitária e inovação cidadã pode apoiar o West Central Initiative e a população da região para fortalecer e defender seus bens comuns. E sentimos que os avanços nas transições energéticas que vimos por lá podem ser implementados aqui.
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Visita à reserva conservacionista da região. Inverno profundo de Minessotta
A filantropia comunitária, apensar da distância e das diferentes realidades que vivemos, nos coloca sob o mesmo guarda chuva: vivemos problemas semelhantes, desafios semelhantes em contextos distintos, mas o conhecimento de ambas organizações fortalece nossa atuação e nos dá coragem para seguir em frente.
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